Dentro de ti
Ana Cláudia Almeida, Ana Maria Tavares, Artur Barrio, Carmela Gross, Hudinilson Jr, Lenora de Barros, Letícia Parente, Marcelo Pacheco, Marina Dalgarrondo, Matheus Chiaratti, Matheus Morani, Mauro Restiffe, Maurício Magagnin, Nuno Q. Ramalho, Paula Scavazzini, Tatiana Chalhoub, Thiago Rocha Pitta e Valeska Soares
curadoria Ulisses Carrilho
São Paulo, 19 de novembro de 2022 – 20 de janeiro de 2023
Touch me. Soft eyes. Soft soft soft soft hand. I am lonely here.
O touch me soon now. What is the word known to all men?
I am quiet here alone. Sad too. Touch, touch me.
[Ulysses, James Joyce]
Dentro de ti deseja fabular uma relação erótica com as imagens – desde nós, sujeitos que criamos e devoramos imagens – para instituir, no espaço de exposição, um espaço de relação: uma erótica entre as imagens. Os trabalhos apresentados ousam, insubordinadamente, reivindicar posições que não sejam fixas no esquema da representação: corpos que desviam da representação; imagens que parecem negar-se a ser um duplo que reflete aquilo que se posiciona diante de um espelho – ou das águas de um lago. Do mito de Narciso, paradigma desde a Antiguidade Clássica para a compreensão da representação, os trabalhos ressoam como a difusa natureza da imagem repercute as condições turvas das águas que levaram o jovem Narciso a apaixonar-se por si.
A exposição surge de um endereçamento ao espelho: Dentro de ti.
Em uma era de franca afirmação da imagem, as superfícies da mostra flertam entre o reflexivo e o turvo.
A metáfora do espelho como fonte de conhecimento percorre a trajetória da humanidade num eterno retorno. Do Antigo Testamento, surgem comparações da capacidade reflexiva do céu às superfícies especulares. Do poeta Ovídio, em Metamorfoses, vem a mais antiga referência escrita do mito grego de Narciso, que recebe o destino fatal de apaixonar-se pela própria imagem ao se perceber refletido nas águas de um lago, tornando-se uma flor. Na história da arte, ostensivas foram as investidas na interpretação de Narciso, obra produzida por Caravaggio no final do século 16. Retomado por Freud, o personagem que só sente desejo por si mesmo, torna-se seu próprio objeto de desejo, um pesado fardo a carregar. Tema de obras icônicas da história da arte, Narciso foi feito alegoria do desejo, da imagem, da transformação por múltiplos pintores, além de Caravaggio, Nicolas Poussin, Turner e Salvador Dalí beberam dessas águas. Na arte renascentista, o mito foi o paradigma para a compreensão de toda e qualquer pintura: pela nossa relação, enquanto espectadores, de projetarmos nossa própria sede nestes objetos – e dentro de seus limites, nossas próprias marcas sofrem metamorfoses. Na arte moderna, esta relação fortifica-se: sem significados fixos, o abstrato aproxima-se vertiginosamente do espelho. No jogo de forças entre cores e formas, no movimento da pretensa harmonia ou do propositado desequilíbrio, percebemos aquilo que todos experimentamos a cada manhã: ao passo que me reconheço, me rejeito. Esta é minha imagem, este não sou eu. Na arte contemporânea, os espelhos surgem como possibilidade de integrar o corpo do público às obras. Entre reflexos, inscreve-se um jogo perigoso: um passo depois, o corpo do espectador desaparece – o que sobra é o seu vazio, vemos nada mais que o mundo inteiro ao seu redor.
Foram muitas as investidas frente ao objeto: quebrar o espelho, pesquisar o seu verso, tentativas de travar diálogos com a imagem. Indagar-se se haveria um mundo outro dentro dele, buscar este mergulho no vazio. Pensar como aquela imagem poderia liberar-se da prisão da superfície fadada a replicar as coisas como elas são. Nestas várias possibilidades, desde uma sociedade marcada pelo narcisismo cotidiano, livre de um tema único ou menos complexo, Dentro de ti apela para uma re lação de sedução, gozo e prazer com as imagens: corpos que se vêem refletidos, duplos que querem ser mais do que cópias. Mais do que reflexos de sujeitos, investimos na hipótese de que as imagens não representam o mundo, mas constituem o mesmo. Assinalam falta e excesso, e contribuem de maneira ímpar para definir quem são os sujeitos que buscam ver-se na superfície desses objetos. Menos importa aquilo que vemos, mas sobretudo aquilo que queremos, podemos, falhamos ou conseguimos ver. As superfícies da mostra vão do reflexivo ao turvo, do explícito à dissimulação. Num entrave entre corpo e imagem, exalam um desejo daquele que vê: uma vontade de ser visto, de ser percebido, de ser reconhecido pelo outro, seduzir e provocar desejo. Não a imagem como enigma, mas o próprio “querer ver”.
Ulisses Carrilho