Madeira de Vento
Marcelo Pacheco
texto curatorial Ana Avelar
São Paulo, 27 de maio de 2023 – 22 de julho de 2023
Coisas fazem coisas conosco
Objetos vivem e morrem. Em nome da obsolescência de sua funcionalidade, são condenados ao se tornarem inúteis. Seus restos preenchem caçambas, lixões; quando dão sorte, acabam na reciclagem – um fim mais digno para uma existência de serviço. Porém, objetos são mais do que sua presença material. Carregam nossas lembranças, memórias, habitam nossa imaginação.
Interessa a visão do antropólogo Daniel Miller quando defende que somos tão trecos quanto os trecos que nos rodeiam – estamos iludidos, diz ele, acerca de nosso poder sobre as coisas. “Isto é, nós pensamos que nós, sujeitos humanos, somos agentes livres que podemos fazer isto ou aquilo com a cultura material que possuímos. Mas não podemos. (…) Coisas fazem coisas conosco, e não apenas coisas que gostaríamos que fizessem”¹.
Nesta exposição, Marcelo Pacheco monta a casa com trecos e troços, como haveria de ser. Cadeira, mesa, gaveta, brinquedo, toalha, porta, cabideiro, bandô, quadro. Seus materiais são duráveis, dizendo da sobrevivência da madeira, do metal, do tecido. O artista recupera objetos abandonados, reintroduzindo-os no mundo por meio do destaque de suas formas, texturas, padrões – e aplicando-lhes elementos cromáticos e geometrias. Esse processo de reabilitação parte de um vaguear urbano, evocativo da deambulação surrealista, atividade que propicia momentos nos quais o artista identifica objetos a serem transformados. As pinturas fogem ao procedimento de coleta, mas repetem as formas encontradas durante o processo.
Por meio desse recolhimento empático, Pacheco encontra resíduos que serão cortados, pintados, costurados, combinados. Essa etapa de desmontagem e remontagem não é fortuita, pois baseia-se num repertório visual da pintura brasileira que faz encontrar Mira Schendel e José Antonio da Silva – além das evocações de Leonilson, Lore Koch, Volpi, Lorenzatto. Trata-se de uma citação do olhar mo- dernista que tinha o mesmo interesse pela forma captada tanto naquilo que se denominava popular como em sua antítese, o erudito.
Todo o tempo Pacheco cita os artistas que interessam a ele – são conversas com a morte como se fossem em vida. Embora uma referência fundamental para seu processo de produção, o artista não repete a leitura modernista da universalidade formal. Ele vai promover encontros sensíveis às diferenças que, aqui e ali, brincam com a sisudez do moderno. São geometrias inscritas no ambiente doméstico, lúdicas, bem-humoradas, embora melancólicas.
O encontro contraditório entre diversão e melancolia traduzido por meio de formas engraçadas e cores vibrantes já nos foi apresentada pela Arte Pop, nos objetos molengas e agigantados de Claes Oldenburg e nas imagens chapadas preenchidas e vazadas por campos de cor de Andy Warhol, entre outros. No entanto, mal podiam imaginar a sociedade de hiperconsumo em que nos encontraríamos na atualidade. Operamos entre a excitação de consumir e a tristeza de estarmos cercados por objetos e imagens que, ao fim do dia, não nos alimentam. Relações casuais entre indivíduos e entre indivíduos e coisas geram apenas ansiedade. Consumimos compulsivamente. Finalmente, Zygmunt Bauman vai nos ajudar a compreender esse estado: buscamos a satisfação imediata do consumo para sufocar nossas inseguranças diante de um mundo desfeito ². Como o Warhol das vídeo-performances, nos tornamos autômatos.
Os trabalhos de Pacheco – docemente – nos retiram dessa letárgica repetição. Não são representações de nós, nem de nossas lembranças pessoais. Mas, nos fazem parar, junto com o artista, para olhar, associar, descobrir, pausar. Compreendemos que o descarte de objetos de ontem é o descarte das subjetividades de hoje. Olhamos os objetos e lembramos de tempos em que as relações com eles e entre nós eram mais detidas, singularizadas, menos fabricadas na China.
Ana Avelar
1MILLER, Daniel. Trecos, troços e coisas: estudos antropológicos sobre a cultura material. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2013, p.140.
² BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p.154