Jardim Novas Mucosas
Diambe
curadoria Catarina Duncan
São Paulo, 13 de agosto de 2022 – 15 de outubro de 2022
“as coisas vivas,
que não pertencem a ninguém
porque são de toda gente,
são insubordinadas”
[Diambe]
A exposição Jardim Novas Mucosas apresenta uma pesquisa contínua de Diambe em torno de vivências cotidianas. Seja a partir de brincadeiras domésticas para transformar alimentos em pequenas esculturas, caminhadas em parques do centro do Rio de Janeiro ou a reverência a entidades guias a prática artística se apresenta como forma de perceber o mundo. Como traduzimos aquilo que vemos? O que nos afeta? Quais são as histórias por trás de cada ser, cada objeto, cada escolha?
A partir de uma experiência com raízes e tubérculos, iniciadas durante o período mais intenso de isolamento devido a pandemia de Covid-19 em 2020, nasceram as Mucosas. Obras que dão corpo a seres inacreditáveis e criaturas misteriosas que estão aqui representadas em forma de pinturas em têmpera, óleo e esculturas em bronze. Essas experimentações diárias fizeram dos tubérculos companheiros que tinham diversas funções; desde exercitar o enraizamento, ampliar a percepção sobre aquilo que nos alimenta, fortalecer a imunidade e, sobretudo, ensinar tempo. Realizar-se das dimensões amplas da temporalidade que nos cruza e aprender o tempo vegetal, metamorfose e mutação. A humanidade é coisa pouca.
A relação de Diambe com os tubérculos foi atravessada pela aproximação da artista com os personagens de ficção científica da escritora Octavia Butler, da série Xenogênese. As esculturas têm títulos como Nikanj, Tehjaht e Ahajas, personagens da espécie Ooloi, que significa “ente querido estrangeiro”. São seres não humanos que ao longo da narrativa compartilham processos de aprendizagem mútua em uma jornada de permuta dos seres extraterrestres com os seres terrestres. Aqui, as batatas doce, melancias, cabaças, quiabos, bananas e gengibres que poderiam ter sido alimento, apodrecido ou brotado, tornaram-se seres em bronze, e são de certa forma eternizadas neste ato. Diambe se torna agente de transformação e se relaciona com cada ser em uma criação afetiva, como se cuidasse mesmo de um jardim.
Na ecologia dos saberes, cruzam-se conhecimentos e ignorâncias. Ela nos convida a aprender outros conhecimentos sem esquecer os próprios para sonharmos com o interconhecimento. Existe, no mundo ocidental, a pretensão de se compreender um jardim como algo totalmente controlado pelo humano, ignora-se o fato de que minerais, insetos e fungos são também agenciadores de jardins. No texto ‘Vegetar o pensamento: manifesto e hesitação’, os organizadores relatam essa experiência de co-autoria do mundo a partir de uma perspectiva menos antropocêntrica: “Plantas são trilha e morada de outros seres. Humanos colhem e pássaros bagunçam frutos. Abelhas fazem festa nas flores. Galhos se comunicam com o vento, raízes com as hifas, sementes pegam carona nos fluxos e asas. Vegetar é crescer em contiguidade com o mundo, coabitar lugares, aderir e fazer espaços, engajar-nos com aquilo que nos circunda – ou, antes, nos atravessa… Polinizar, cruzar, misturar, gerar o imprevisível. Brotar na terra, crescer, florescer, frutificar e apodrecer, voltar para terra. Transformação é o nome do jogo. Vegetar é uma estratégia.”1
Jardim Novas Mucosas é também construída a partir de um encontro de Diambe com esculturas de Valentim da Fonseca e Silva, conhecido como Mestre Valentim. Nascido em Minas Gerais, foi para o Rio de Janeiro em 1770 onde foi o artista de maior destaque do barroco. Ele é responsável por muitas obras e esculturas espalhadas pela cidade. Em uma caminhada, antes de ir ao ateliê, Diambe passou pelo Passeio Público, onde encontrou as pirâmides demarcando o limite em que o mar chegava, as esculturas de jacarés do lago dos amores e até um pavão branco caminhando pela praça como se fosse dono ou originário dali. Todos esses elementos se apresentam no jardim, seja no título das obras ou em inspirações pictóricas.
O título da exposição também dá nome a um vídeo inédito realizado pela artista em parceria com o Despina e outras colaboradoras. A obra mistura imagens de arquivo da artista em coleções de museus europeus que historicamente saquearam peças das chamadas colônias, o processo de feitura das Mucosas e coreografias coletivas filmadas no jardim da quinta da boa vista que abriga as ruínas do Museu Nacional. A contraposição das imagens de um museu intacto e impune pelos seus crimes, ao lado de imagens de corpos que desejam, criam, pulsam e vivem apesar da destruição, reafirmam a potência da frase que abre o filme: “podemos ser mais do que imaginamos ser”.
Esse encontro de tempos, com um artista que trabalhava em bronze duzentos e cinquenta anos antes, com outras pessoas que inspiram a criação, movimenta e nos devolve mais uma vez a sensação de multiplicidade temporal, de finitude e transformação. A temporalidade é espiralada, regida por Exú no meio da encruzilhada, quebrando qualquer forma linear e consecutiva de conceber o tempo. Encontramos nas obras desse jardim coletivo um universo onírico, fantástico, mágico e ainda assim extremamente vivo, terrestre, firmado na realidade. Compreendo aqui, a agência de tudo o que movimenta, como diz o escritor Emanuelle Coccia, “O mundo, deste ponto de vista, é antes de tudo uma realidade vegetal: é um jardim antes de ser um zoológico, e é somente porque é um jardim que podemos ali viver”2
Catarina Duncan
1 ‘Vegetar o pensamento: manifesto e hesitação’, no livro Vozes Vegetais – diversidade. resistências e histórias da floresta. Org. JOANA CABRAL DE OLIVEIRA, MARTA AMOROSO, ANA GABRIELA MORIM DE LIMA, KAREN SHIRATORI, STELIO MARRAS, LAURE EMPERAIRE. p. 12
2 SILVA, Denise Ferreira. Sobre Diferença sem Separabilidade. In: Catálogo da 32º Bienal de São Paulo. São Paulo: Fundação Bienal Internacional de São Paulo, 2016.