O céu, um cinema
Yasmin Guimarães
curadoria Victor Gorgulho
Rio de Janeiro, 07 de julho de 2022 – 30 de agosto de 2022
Azul, azul-claro, azul-piscina, azul-algodão-doce, bege, bege-baunilha, branco, cinza, cinza-bebê, cinza-chumbo, mar fim, areia, gelo, nuvem, rosa, rosa-bebê, rosa-batom, amarelo, amarelo-manga, verde, verde-bandeira, verde-piscina, lilás, violeta, roxo, cor-de-poeira, cor-de-poeira-cósmica, azul-estrela, azul-passado, azul-futuro, azul-lusco-fusco, azul-infinito, azul-cor-do-céu.
O que é o céu se não um cinema involuntário da própria natureza, a tingir o horizonte, diária e incansavelmente, com uma infinda paleta de cores?
Em sua primeira exposição individual na Quadra, Yasmin Guimarães apresenta um conjunto de pinturas recentes que evidenciam um substancial aprofundamento de seu interesse pela paisagem como mote principal de sua produção pictóri ca. Em telas de formatos, escalas e materiais diversos, a artista tece uma singular abordagem à aquela que, sabemos, é uma das temáticas mais investigadas no campo da arte, ao longo dos últimos séculos. A paisagem de Guimarães, no entanto, reclama para si tal contemporaneidade já à primeira vista.
Partindo de uma abordagem da paisagem enquanto um espectro de sua memória – e não produto referencial de ima gens pré-concebidas por câmeras de smartphones, por exemplo – a artista conduz uma prática de ateliê marcada pela intensidade e pela repetição, ao passo em que debruça-se simultaneamente ao trabalho em diferentes telas que povoam seu estúdio. Se a superfície da pintura é uma espécie de receptáculo do estado emocional ou psíquico daquele que com ela dialoga, Guimarães transfere para suas telas paisagens que evocam insuspeitadas sensações tipicamente humanas. Estão ali a alegria, a esperança, certa melancolia, um senso de rememoração e de nostalgia.
Se as telas são superfícies porosas que absorvem tudo aquilo que atravessa a artista durante sua fatura técnica, são tam bém elas também espelhos fractais a dispararem, em retorno, estas múltiplas sensações sobre as retinas daquelas que as olham, inundando-os em hipnose, encantamento e deleite. Em sua prática, Yasmin entende a paisagem como uma espécie de exercício fabulativo, poético, convidando o observador de suas obras a assumirem o papel de espectadores nada pas sivos, fitando-as brevemente no espaço expositivo. Guimarães nos convida, sobretudo, à uma experiência de espectação mais próxima, digamos, de um regime de visão mais apurado e lento, próprio do campo do cinema, quem sabe.
Procedimento comum em pinturas anteriores de sua produção, vemos aqui o uso de uma aproximação do olhar para detalhes e seções não usuais desta paisagem constituída: um certo zoom-in operado pelo olho da própria artista, nos colo cando diante não só da paisagem ampliada do horizonte – a imagem saturada e lugar-comum com a qual nos deparamos com a *ideia* de paisagem nos mais diversos campos da imagem contemporânea. Guimarães nos apresenta, em via opos ta, paisagens tecidas a partir de seu peculiar olhar e uso da tinta à óleo, principalmente. Primeiro ao derramá-la, ainda que de maneira contida e altamente precisa, sobre o fundo da tela, e, então, ao encobri-la com pinceladas ora mais robustas ora mais delicadas, que revelam-se verdadeiros lampejos, rajadas, rasuras, explosões e afins de uma paisagem que já não conseguimos mais identificar pelo seu todo, mas sim por suas partes.
Paisagem que se torna, assim, um tanto mais subjetiva do que propriamente mental. Na era das telas de smartphones, celulares, monitores de TV, telões, LEDS, imagens técnicas, pixeladas, digitais e algorítmicas, Yasmin Guimarães prepara o terreno de sua pintura como quem flana os olhos pela paisagem infinita que está tanto diante dos seus olhos quanto nas profundezas de sua mente e coração. O céu, um cinema, constitui, afinal, um generoso convite da artista a adentrarmos seu universo visual por vias que se dão na contramão do frenético regime visual e cognitivo com o qual convivemos, nos dias de hoje.
Este é o convite feito pelo banco de madeira posicionado no centro da primeira sala do espaço expositivo. Guimarães quer que nos demoremos, que deixemos nossos olhos descansarem, esquecerem, mergulharem, perderem-se. Seja em vistas amplas ou mais recortadas, seja sobre o linho ou sobre a superfície translúcida dos tecidos que utiliza, revelando o chassi de suas telas. Deixemo-nos hipnotizarmos por tal experiência sinestésica, enfim. Se o cansaço é o mais vil dos imperativos da vida contemporânea, nossas retinas pedem (elas também) repouso e refúgio, a doce calmaria do descanso das telas de imagens maiores do que a própria vida. Guimarães produz paisagens que se concebem como imagens não maiores do que a vida em si – como a tecnologia tanto busca, atualmente. Suas paisagens têm o tamanho da própria vida, da vida em si, aquela que experienciamos cotidianamente, individual e em coletivo. A paisagem que olhamos é a mesma para todos, todas, todes. Há ponto de fuga, há horizonte, há descanso e há contramão. O filme não acaba e o espectador pode demorar-se, aqui, o quanto desejar. A sessão é contínua e ininterrupta: do ateliê à galeria, da intimidade da artista ao espaço público.
Bom filme!
Victor Gorgulho