Olhe bem as montanhas
Aislan Pankararu, Alexandre Brandão, Amadeo Luciano Lorenzato, Amélia Toledo,Ana Cláudia Almeida,Ana Dias Batista, Ana Kia, Arorá, Ateliê da Rapa, Ayla Tavares, Brígida Baltar, Cao Guimarães e Rivane Neuenschwander, Carla Santana, Cildo Meireles e Edouard Fraipont, Dan Coopey, Deco Adjiman, Estela Sokol, Gilson Plano, Hamish Fulton, Iagor Peres, Isadora Almeida, Lais Myrrha, Laura Teixeira, Leka Mendes, Luiza Crosman, Manfredo de Souzanetto, Manuela Costa Lima, Marcelo Pacheco, Matheus Chiaratti, Nilda Neves, Paloma Mecozzi, Patrícia Leite, Rodrigo Andrade, Thomaz Rosa, Tiago Malagodi e Yasmin Guimarães
curadoria Camila Bechelany
São Paulo, 17 de agosto de 2024 – 26 de outubro de 2024
“Once I was asked in front of a television camera:
“Who is the most important person you ever met?” and I remember answering: “A mountain.”
[Etel Adnan, em Journey to Mount Tamalpais]
A exposição Olhe bem as montanhas reúne mais de 40 obras que, de diferentes maneiras e em variadas mídias, se desdobram sobre o tema da paisagem, entendida de maneira ampla, como espaço que nos circunda, pelo qual somos afetados e sobre o qual agimos. Mas não se trata aqui de fazer uma apologia da natureza, ou melhor, de um ideal de natureza, até porque a ideia de que a paisagem é o correspondente exato da natureza é inventada com o objetivo de definir e dominar o espaço circundante. Tampouco se trata de realizar um resgate histórico da pintura de paisagem, ainda que seja notável o interesse atual de um expressivo número de artistas por esse gênero, isso seria no mínimo anacrônico.
Trata-se sobretudo de se posicionar no mundo atual pra enxergá-lo sem filtros e sem artifícios. Aceitemos o convite de Manfredo de Souzanetto e de Carlos Drummond de Andrade, artistas que nos alertaram a olhar bem as montanhas e voltemos à experiência que antecipa e fundamenta qualquer experiência mais complexa que entretemos com o mundo: o olhar. Os 38 artistas aqui reunidos partem de distintos pontos de vista, do mais distante ao mais aproximado. Há cenários construídos a partir da perspectiva do espaço sideral, de fora da Terra, como nos desenhos de Luiza Crosman e de Leka Mendes, até vistas do próprio céu como na pintura Pássaro de mão de Thomaz Rosa e na fotografia de Brígida Baltar, em que a própria artista se envolve numa nuvem de neblina. Outras imagens partem do mais tangível, da própria terra, como as pinturas de Aislan Pankararu e Carla Santana, abstrações constituídas de pigmentos de terras de diferentes cores, nos remetendo a caminhos e entranhas, e dialogam com o interior dacaverna na pintura de Nilda Neves. No oposto, no mais próximo, estão os desenhos de Arorá que só são visíveis de muito perto e nos revelam abstrações sutis como o interior de algumas flores.
A motivação inicial para essa exposição foi o projeto realizado em Belo Horizonte em 1981 por Souzanetto, intitulado O lugar da ausência ou réquiem para a Serra do Curral. Na ocasião o artista produziu uma ação, criando cartões postais nos quais se viam duas imagens fotográficas da Serra do Curral, numa espécie de antes e depois da ação da mineração que modificou completamente o perfil da montanha, que é a marca da cidade. Além de ser patrimônio ecológico, a Serra é patrimônio histórico e cultural, símbolo da paisagem de Belo Horizonte, e desde o início do século XX vem sendo explorada pelos seus recursos minerais. Em realidade, a transformação da paisagem de Belo Horizonte representa um sintoma de um processo já longo, de exploração da paisagem em Minas Gerais como um todo e sobre o qual o poeta Drummond escreveu diversos textos1. As circunstâncias atuais dos impactos da ação humana no ambiente, assim com os impactos gerados para a própria vida humana atravessam o olhar dos artistas ainda que não sejam temas de suas obras.
Em seu já celebre ensaio A invenção da paisagem, Anne Cauquelin afirma o seguinte: “Coisa curiosa: quando se trata de culturas estrangeiras imaginamos facilmente a relação entre os espaços apresentados e os modos de vida (…) de tal forma que chegamos a perceber uma espécie de tecido inconsútil, sem dentro nem fora, em uma única peça. Mas pra nós, em nossa própria cultura, temos grande dificuldade em imaginar que nossa relação com o mundo (com a realidade, diga-se) possa depender de um tecido tal que as propriedades atribuídas ao campo espacial por um artificio de expressão – qualquer que seja ele – condicionem a percepção do real.”
Portanto, nossa percepção do real deve ser entendida também a partir da construção cultural e da história visual construída até aqui. As obras reunidas partem do envolvimento humano com as paisagens, sejam elas vistas em um dispositivo qualquer, sejam elas experimentadas presencialmente. Não existe cultura sem natureza e não existe natureza sem cultura, e o que está em jogo é a forma como essas motivações e preocupações do mundo real são representadas nos cenários da arte contemporânea. Há indicações de como podemos ver o mundo, através do conceitualismo, como nas obras de Hamish Fulton e de Cildo Meireles e Edouard Fraipont, em que ações na natureza são traduzidas em registros visuais. Um objeto, no caso de Fulton, e fotografias, no caso de Meireles e Fraipont. Ainda podemos ver o mundo através de verdades fundamentadas e históricas como na pintura de Tiago Malagodi, que revisita uma gravura do século XIX que retrata a exploração do Rio Doce, aparentemente fielmente reproduzida, mas introduzindo nela um elemento estranho, o personagem Pica-Pau, que pelo seu anacronismo revela a permanência do imperialismo na paisagem brasileira.
Alguns artistas revisitam a pintura de paisagem de forma direta, como Patricia Leite, que faz uma homenagem aos pintores fauvistas utilizando cores contrastantes e infiéis à realidade. Em Ana Kia, Isadora Almeida, o Ateliê da Rapa, Yasmin Guimarães e Rodrigo Andrade, vemos vistas do horizonte de montanhas a partir de uma perspectiva ampliada, resgatando e atualizando a linearidade, forma simbólica fundamental subjacente à paisagem. Sejam pinturas feitas ao ar livre ou a partir de fotografias ou memórias, são obras oriundas de um desejo de expressão do espaço e da importância da natureza como um elemento do pensamento, da percepção e da identidade do artista. A linearidade é também utilizada nos trabalhos de Laura Teixeira e Lais Myrrha que criam horizontes espelhados, a partir de materiais sólidos.
A materialidade e a experiência física do território são motivações para outro conjunto de obras. Marcelo Pacheco, Deco Adjiman e Dan Coopey utilizam materiais orgânicos, madeira e pedras encontrados em caminhadas no campo ou deambulações na cidade e Manuela Costa Lima utiliza cabaças para criar “uma coluna infinita” mole que remete a orientação como uma grande agulha magnética inexata. O mapeamento no território é tema também da obra de Ana Dias Batista, que invoca a nossa relação com o espaço por uma espécie de conscientização da escala do mundo em relação a uma pedra. Por fim, com a obra de Amélia Toledo estamos diante de uma grande pedra natural que simplesmente, por sua infalível presença, invoca o real, de tal forma que a paisagem se torna atemporal e perfeita.
Camila Bechelany
1Sobre a relação de Drummond com a mineração ver o excelente livro de Jose Miguel Wisnik, Maquinação do Mundo. Cia das Letras, 2018.