O primeiro dia de Dadá

Flora Rebollo

curadoria Julie Dumont
Rio de Janeiro, 10 de novembro – 16 de dezembro 2022


Entre o micro e o macro, a dobra do corpo e o canto da casa, o centro e a borda, o doméstico e a imensidade do universo, O primeiro dia de Dadá, exposição individual de Flora Rebollo na galeria Quadra, evoca uma dança antropo cósmica na qual forças centrífugas e centrípetas se cruzam e se entrelaçam em um fluxo constante, cada obra podendo ser vista como antecipando ou continuando a outra. As pinturas e os desenhos da artista brotam, de fato, do mesmo lugar: um espaço de jogo e experimentação no qual técnicas, matéria e elementos se alternam e se repetem, evidenciando os contrapontos e jogos de escala que permeiam um corpo de imagens unido por uma narrativa intuitiva, abrangente e horizontal.

Nos desenhos de Flora Rebollo, as forças centrifugas, presentes na sua obra, parecem se condensar para extrair a essência das imagens de forma direta, frequentemente mais figurativas; revelando um leque do seu vocabulário pictórico, como um tipo de gabinete de curiosidades composto de associações de gestos, imagens e objetos talismã pertencendo a artista. Nesta biblioteca particular, coisas corriqueiras do cotidiano coexistem ao lado de elementos cósmicos organizados em uma sequência nas qual as cronologias se confundem, animais parecendo letra ou cadeira dialogam com seres raiados, relógios mimetizam o astro solar e arestas geométricas abraçam as curvas espiraladas do universo.

Já nas pinturas, os elementos pictóricos revestem mais as características do macro e se espalham na tela, como no caso de Caranguejeira, cujo corpo gira fora do quadro como uma cusparada se espraiando por todos os cantos. Composta de faixas de tela costuradas, a obra lembra a fusão-confusão entre os conceitos de criador e de criatura da história do Frankenstein. Da própria pele para o espaço da tela, as marcas de mão carimbadas pela artista materializam assim a obra.

Nesta dimensão de fronteiras borradas, onde a forma toca o informe e os limites físicos entre o corpo, a obra e o espaço ao redor desaparecem; o conjunto de pinturas, desenhos e esculturas-objetos apresentado por Flora Rebollo lembra que é da ausência de contorno que nasce o mundo primordial, um vórtex que pode engolir tudo, até as galáxias mais distantes, para regurgitá-las em novos arranjo e recomeçar tudo de novo em um ato auto antropofágico de criação e destruição.

Em seu vai e vem de ideias e imagens, e suas passagens sem hierarquia do macro para o micro, O primeiro dia de Dadá mimetiza o fluxo que transita no espaço do  ateliê e na mente da artista. Contrastando com a espacialidade expansiva de exposições anteriores, O primeiro dia de Dadá, cujo título se inspira do livro que a artista traz da sua infância, o Dia a Dia de Dadá, nos aproxima de uma intimidade do cotidiano em uma escala muito humana, uma escala de anotações diárias coletadas ao longo do tempo. Assim, O primeiro dia de Dadá evidencia, em um contexto-espelho quase doméstico, o gesto, a matéria e o prazer do fazer. Flora Rebollo desvela assim os desdobramentos sucessivos da criação de uma linguagem visual: dos primeiros balbucios às associações mais complexas, organizados e desorganizados por uma mão – espiral só.

O primeiro dia de Dadá, por Julie Dumont – The Bridge Project

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