A volta da sorte

Thomaz Rosa

textos críticos Ana Paula Lopes e Daniel Donato Ribeiro

São Paulo, 21 de outubro de 2023 – 16 de dezembro de 2023

 

Mentiu pra mentira

Santo André, 08 de outubro.

Ainda lembro das nossas conversas no espaço expositivo. Entre risos e estudos para concluir a graduação, havia anseios e desejos que compartilhamos. Não me esqueço da sua intervenção no meu projeto editorial sobre alimentação, lembra dele? Você acredita que tenho esse trabalho?! Eu o abro e exala um cheiro intenso de tinta óleo, misturada com a pimenta. Você me perguntou, naquela ocasião: “Ana você já leu A Festa de Babette? Esse livro pode te ajudar com o seu trabalho”. Bom, A Festa de Babette se tornou um dos meus livros favoritos. O trecho, próximo ao término do livro, em que Babette está na cozinha e diz a suas patroas – “Sou uma grande artista, madames”1 – me faz pensar em você e em sua produção, e reflete as questões que discutimos em sua casa ateliê.

Entre as pinturas, tintas, tabuleiro de xadrez, cerveja, livros e Péricles, tocando ao fundo, discutimos sobre conceitos e um sistema da arte, no qual o seu trabalho está inserido e se esgarça. Pensar sobre o que faz um objeto ser artístico e se “é estética ou cultura” é uma discussão entre “ordens de causas mentais, intensão e sentimentos”2, tal como posto por Danto. O que, aliás, confesso que ainda estou refletindo sobre a estética que circunda a unha de acrigel, e se é arte ou não. Tocava Péricles – não me recordo qual era a música -, enquanto indagávamos a transfiguração dos objetos comuns, que mudam a chave da estética. Seria o ponto da ação, como posto por Wittgenstein, “é um movimento corporal”3 que vai gerar – vira a chave – uma proposição. Aspecto que entrelaço ao encontro da mesa na rua de Milão, levando ao movimento propositivo, ao justapor a mesa ao pictórico.

Na verdade, o que estamos colocando aqui e o que falamos foi sobre o gesto, este é ponto. O gesto trai, “menti pra mentira”4 como musicado pelo Grupo Fundo de Quintal. É ele, o gesto, quem dá forma, transfere e dá a luz. Isso é ampliar os horizontes, este é o princípio da Maiêutica da Pintura5. Quando Arthur Danto diz: “[…] A Fonte de Duchamp passou de mera coisa a obra de arte, porque aquele urinol específico mereceu tão impressionante promoção, enquanto outros urinóis obviamente idênticos a ele continuaram relegados a uma categoria ontologicamente degradada. A teoria deixa ainda em aberto o problema de outros objetos indiscerníveis”6. Acho que agora estou compreendendo o ponto colocado por você e Daniel7. A mudança de um “comum” para o estado estético é uma chave que desnorteia o ser, e nos deixa confusos, como quando caminhamos em um simples espaço expositivo ou com um gesto que nos deixam em dúvida em como se comportar. Quando, por exemplo, uma comida é posta em uma mesa dentro de um espaço expositivo e perdermos a orientação se devemos comer ou não, como vocês disse Thomaz.

A sua pintura é uma fatura que olha para uma história da arte formal, mas, como dissertou há dez anos, “a desfaz”. Você, Rosa, pinta em diferentes tamanhos de telas, indo do pequeno ao tríptico, e o incrível é que você sempre retorna de alguma forma às telas menores. Contudo, parece que você já tem um domínio desse tamanho e precisa se jogar ao risco. Sua pictorialidade é seca sem excesso de óleo, onde estampas, pintas coloridas, desenhos, caveira, relógio e sua própria sombra exploram a espacialidade. As pinturas levam para o espaço o cotidiano que desfazem a aura de pintura e conseguimos notar tempos e momentos, gerando um caráter intimista por recuperar e nos aproximar de uma história da arte e de pintores, sejam europeus, norte-americanos e a própria pintura paulistana, gerando códigos seus, através de forma vital do cotidiano e jubiloso.

Thomaz, acho que começo a entender o que é o sonho. Uma vez você me disse que, antes de comer aquele sonho lindo na vitrine da padaria, ele passa por um processo. E este é o processo do labor, o qual se iniciou com você há dez anos atrás. Foi “acreditar que sonhar sempre é preciso”8, como escreveu Racionais MC’s, e em um curso de persistência, onde se “mentiu pra mentira” e as estatísticas. E que, muito pelo contrário, não é uma pintura incomunicável, mas uma maiêutica9 que emerge particularidades do universo da pintura e com jogos familiares, como o trabalho do fazer das unhas da sua mãe, que emerge algo singular. Bom, meu amigo, esse é o gesto da volta da sorte e o debaixo sol10

Ana Paula Lopes

1Blixen, Karen. A Festa de Babette. São Paulo: Cosac Naify. p. 29.
2Danto, Arthur C. A transfiguração do lugar-comum. São Paulo: Cosac Naify, p. 34.
3Ibiem., p. 33.
4Grupo Fundo de Quintal. A volta da sorte.
5Referência a dissertação de final de graduação do Thomaz Rosa, Arte Mídia na dimensão do ensino e aprendizagem: Pintura e o nome incomunicável, apresentada na Universidade Estadual de São Paulo – UNESP, 2014.
6Danto, Arthur C. A Transfiguração do lugar-comum. São Paulo: Cosac Naify. p. 39.
7A autora se refere ao curador Daniel Donato Ribeiro.
8Racionais MC’s. A vida é desafio.
9A autora faz referência a dissertação do final de graduação do Thomaz Rosa, Arte Mídia na dimensão do ensino e aprendizagem: Pintura e o nome incomunicável, apresentada na Universidade Estadual de São Paulo – UNESP, 2014
10Eclesiastes 1. Bíblia.

 

Um lance de dados jamais abolirá o acaso1

A evocação de signos e experiências da história da pintura é facilmente reconhecível nos trabalhos de Thomaz Rosa. Imagens, formas e maneiras de pintar são recuperadas de um repertório da arte pop e moderna para servirem de motivação ao aparte coloquial da obra. Em seguida, o que fora cuidadosamente escolhido é friccionado por gestos conceituais e abrasivos aos esquemas: um alfabeto de cores em grid se avoluma em blocos de madeira sendo posicionado como um jogo de tabuleiro (Material dourado, 2023), a indicação vetorial do movimento das setas escoa em direções permanentemente incertas (Dropar, 2020) e estruturas geométricas gradualmente se desfazem em linhas flutuantes e moles (M#2, 2022, e, Algo suprematista, 2022).

Desse modo, o trabalho avança da posição de comentário ou interpretação da tradição e, abruptamente, se afirma como autodeterminação de um fazer insubordinado. Uma das principais características da obra é se situar no meio-caminho entre o esquema e a anedota, a necessidade da estrutura e a contingência dos acontecimentos. Não há aqui nada de comparável à resolução final de um problema, em que se descobre o valor da incógnita por sua relação a termos conhecidos. Afinal, o problema só pode ser resolvido se ele é determinado. É em função da indeterminação do problema que o acaso, o acidente e o erro se tornam elementos intrínsecos à prática pictórica de Thomaz Rosa. Mas, apenas ousa fazê-lo após ter alcançado um vocabulário de técnicas, signos e notações que é constantemente citado.

À vista dessa operação, as equações pintadas a óleo não aparecem apenas como registro de um fluxo de consciência. São escolhidas e figuradas com minúcia enquanto indícios de uma projetualidade que vai se esgarçando, se torna incompreensível e, enfim, perde a utilidade (Momento: Sobre o vermelho e o azul, 2017). Assim, aparecem como vestígios desse projeto que tende ao devaneio por incorporar, em um mesmo procedimento, imaginação, memória e pensamento racional. A miscelânea de imagens provenientes da história da arte e de desenhos animados, bem como as pinceladas em pontilhismo, drippings, padrões geométricos e figurações de intuição impressionista integram essa atitude transgressora, que acontece pela dispersão e incongruência dos elementos que passam para a pintura. Por isso, o trabalho permite a leitura das cifras e imagens em diversos sentidos. É uma composição prismática, um caleidoscópio de toda sorte de signos que, de perto ou de longe, parecem querer indicar um sutil fio condutor latente. Porém, sem declarações totalizadoras ou esquematizações, o trabalho prefere restar vacilante para conquistar o despojamento necessário que faz emergir a espontaneidade. A pintura de Thomaz Rosa acontece nesses gestos de desacertos e gracejos em relação a estruturas que pretendem afirmar uma significação unívoca. Por essa via, alcançam uma instável unidade final que resiste em se reduzir à soma das partes.

É um procedimento repleto de ação e que se vale de artifícios. As sombras que aparecem em alguns quadros são produzidas em ateliê, por meio de um refletor que o artista utiliza para iluminar os trabalhos. Elas não são indícios do desaparecimento de um objeto físico ou de um acontecimento que se esvai pelo decurso temporal, mas antes são espectros vivos que animam o campo das ações testemunhadas pela tela como espectador desinteressado. A projeção espacial das sombras sobre essa superfície faz alusão à materialidade física do plano e testa a cinética de objetos banais, como meros pregos, até aqueles carregados de valor simbólico, como o cavalete que se projeta sobre fundo vermelho (A volta da sorte, 2023).

Como qualquer superfície material, a tela permite a adesão de todo tipo de objeto de uso cotidiano: relógios, sacolas de museus, pipocas, cigarros, saquinhos plásticos ou fita crepe colorida. Aqui não se trata apenas de trazer à tona as propriedades latentes desses elementos. Eles adentram o devaneio que cria equivalência entre todo tipo de coisa e cujo efeito é estridente, como um jorro de informações e imagens não solicitadas que, por isso, falam mais alto. Nessas telas, os acontecimentos constantemente têm sua ação sensível maximizada e invertida. Sem heroísmo ou qualquer sisudez, antes com malícia, tudo que é leve, finge ser denso; o fino, volumoso; o leve, pesado. Um rolar de dados sugere, assim, um acontecimento estrondoso (o é da coisa, 2020). Já as bolas de tênis de mesa ganham peso e parecem forçar seu caminho pela massa de resina acrílica pintada em preto (A letra a, 2023).

Todavia, a prática de Rosa ainda abre espaço para trabalhos mais ordenadamente compositivos e até um pouco açucarados (Composição com roxo e azul, 2021). As esculturas, em alguns casos, procedem quase que por inversão em relação à operação das pinturas: título descritivo, uso contido da cor, subtração do volume e multiplicação da massa que dá sustentação (Três vasos e um arco com o interior amarelo, 2023). Mais um desvio em relação ao que poderia ser agregador de um sentido unívoco. Nesse amplo manejo de operações pictóricas e escultóricas do artista, se trata de criar circunstâncias para que a contingência possa emergir justamente em um lance de dados.

Daniel Donato Ribeiro

1Título extraído do poema de Mallarmé, “Um lance de dados”, In: Mallarmé. 3ª ed.Trad. Haroldo de Campos. São Paulo-SP: Ed.Perspectiva, 1991.

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