Ana Cláudia Almeida & Tadáskía

Ana Cláudia Almeida e Tadáskía

curadoria Clarissa Diniz

São Paulo, 30 de novembro de 2024 – 24 de janeiro de 2025

Nesta exposição, Ana Cláudia Almeida e Tadáskía compartilham, entre si e conosco, alguns de seus mais recentes trabalhos, produzidos nesse momento em que as artistas – criadas, respectivamente, em Realengo e em Santíssimo, bairros da Zona Oeste do Rio de Janeiro – se encontram morando, ou indo e vindo dos Estados Unidos da América. Foi lá que, recentemente, puderam conviver numa proximidade nunca experimentada, compartilhando casa, ateliê e refeições durante um breve período de residência artística no estado de Nevada.

Apesar de aproximá-las, esta exposição resiste a assemelhá-las ou compará-las. Não se trata de um jogo de luz no qual uma reflete a outra. Preferimos caminhar à margem dos espelhos para usufruir das sombras que seus reflexos não alcançam: “Para mim essa exposição é um convite a perceber não a familiaridade, a amizade e o interesse de me aproximar, mas também o que na nossa história nos diferencia: as distâncias e o gap entre nós duas. A magia do desencontro no encontro”, confessou Tadáskía.

Advertimos, assim, que as disparidades das obras de Ana Cláudia Almeida e Tadáskía não são complementares. Suas diferenças não se equivalem. As singularidades de suas obras sublinham precisamente o desconhecido que resiste à presunção de familiaridade que hoje as ronda – porque artistas, porque negras, porque cresceram nos subúrbios cariocas, porque pintam, porque desenham.

Não é a despeito, mas em razão de suas individualidades que se faz o diálogo entre suas obras.

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Em Ana Cláudia Almeida, pintar é, essencialmente, transformar. Em tudo distante do messianismo que advoga que a “arte transforma o mundo”, para a artista, a primordial metamorfose é aquela inerente ao trabalho de criação. Profundamente atraída pela físico-química das matérias e do tempo – e, na mesma intensidade, prevenindo-se para não discipliná-las –, Ana manipula e compõe com tintas, plásticos, bastões a óleo, tecidos e imagens a partir de seu patente compromisso com a memória daquilo que, juntos, experimentaram.

Ainda que, no vídeo “Piraquara” (gravado a partir das histórias de sua avó, Maria de Lourdes Santos) ou na recente obra “Diário” – uma espécie de cotidiano visualmente anotado –, a artista se relacione diretamente com a temática da memória, é sobremaneira em suas pinturas que testemunhamos esse interesse engendrar uma política das formas. É no modo como sobrepõe, mistura, subtrai, transfere, dobra ou expande (dentre outras ações) as cores, matérias e tempos com os quais trabalha, que Ana Cláudia Almeida tem desenvolvido um modo de fazer que se situa, ética e esteticamente, na contramão dos apagamentos.

A artista cuida para que seus últimos gestos não aniquilem os vestígios, a impregnação ou a densidade daqueles que lhe foram anteriores. Toma partido do que veio antes como um generoso princípio para o que se seguirá, do que é evidência o seu fascínio pela técnica da monotipia, exibida nas grandes pinturas presentes na exposição. Ana Cláudia Almeida articula, no âmbito formal, a experiência ontocosmológica da ancestralidade: “O ancestral não é aquele que morre. O ancestral é o que permanece”, ensina Leda Maria Martins.

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Por sua vez, Tadáskía se interessa pela transformabilidade como premissa existencial. Em seus desenhos, esculturas, livros, fotografias e instalações, a transfiguração das cores, linhas, formas e manchas produz a sensação de um estado latente de impermanência, no qual as mais variadas possibilidades de transmutação estão, a todo tempo, na iminência de acontecer, de se repetir, de se renovar.

A fluidez e a leveza com as quais a transformabilidade se anuncia no imaginário da artista desafiam a causalidade, a economia das necessidades e urgências, ou mesmo a retórica jurídico-moral que estabelece deveres e reivindica direitos. Diferentemente do trabalho transformador que transpira das obras de Ana Cláudia Almeida, em Tadáskía a transformação parece ser da ordem da aparição, das coisas que simplesmente acontecem, ou não. Se a obra de Almeida é impregnada de memória, talvez a de Tadáskía esteja tomada por magia.

Além do comportamento enfeitiçante da visualidade de sua obra, o caráter fabular de suas escritas e histórias se torna um antídoto contra o assujeitamento da representação à episteme realista. Em trabalhos que se comportam como livros de páginas soltas, ao brincar de produzir saltos e volteios nos fluxos dos sentidos, é a própria linearidade da razão narrativa e suas pretensas coerências que Tadáskía provoca. É nesse território de intenções que, na exposição, estão os desenhos e as esculturas que ludicamente testemunham a saga da ladybug joaninha.

Como uma artista que produz sentido, movimento e transformação a partir das diferenças e incongruências entre “ser” e “parecer”, Tadáskía reimagina as racionalidades e (im)possibilidades socialmente impostas. Sua obra não se situa além do “Real”, mas aquém dele. Seu léxico eminentemente onírico faz, do exercício de sonhar a mudança das formas, a sua política.

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Nos conjuntos de obras que agora ocupam a Fortes D’Aloia & Gabriel e a Quadra, em São Paulo, testemunhamos uma artista estranhar sua própria cor diante do cromatismo da outra, ou se admirar com a transformação das dimensões de seu trabalho quando visto desde a escala da obra alheia. Ainda que fugazmente, até mesmo as intencionalidades dos gestos de uma podem se achar desnorteadas quando encostam no espaço-tempo da outra. Afinal, aproximar  – e está aí a curadoria para nos provar – é produzir equívocos.

Mas o contrário do equívoco não é a verdade. Sua conformação é mais geométrica do que moral: não se trata de errar, mas de desmontar a pretensa unidade do real. O equívoco não emerge das diferentes formas de “ver o mundo”, mas se situa entre os “distintos mundos que são vistos”, como esmiúça Viveiros de Castro. O seu inverso não é a realidade, mas o unívoco.

A equivocação não é, portanto, nem uma insuficiência de compreensão, nem uma imprecisão da ordem da percepção, mas é a condição mesma da interpretação. É através do equívoco que incutimos variações na univocidade, transformando a unidade numa multiplicidade interminavelmente interpretável.

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Uma sociedade que sonha em ser menos excludente convoca-nos a experimentar concepções de formatividade que acolham a liberdade – por vezes mágica – da transmutação, assim como a transformação enquanto política de fabricação de memória e de permanência. Uma formatividade que não force as subjetividades, os corpos e os sentidos a estacionarem suas contínuas metamorfoses para que se enquadrem no obturador imperial e, fossilizados pelo imaginário patrimonialista, possam ‘conquistar o privilégio’ de não serem esquecidos – tanto no sempre, quanto no agora.

É a partir dessa vocação transformativa que nesta exposição profanamos o espelho como forma arquetípica da representação e da relacionalidade. Com Ana Cláudia Almeida & Tadáskía, queremos desaprender a gramática comparativa que converteu proximidades em semelhanças e naturalizou a tradução como um exercício de adequação dos sentidos alheios aos termos de nossas próprias métricas.

Clarissa Diniz

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