As listras da zebra e as coisas sem pais
Marcelo Pacheco
curadoria Julie Dumont
Rio de Janeiro, 6 de março de 2021 – 10 de abril de 2021
As listras da zebra e as coisas sem pais é o retrato pictórico de um desvio que virou estrada sob a rota de viagens na Europa e na Ásia, entre exposições perdidas e, finalmente, visitadas, pois sincronicidades da vida levaram de fato Marcelo Pacheco, jurista de formação, a abraçar as artes visuais. Assim como o protagonista do romance popular A Zebra, do francês Alexandre Jardin, o artista escolheu uma trilha fora da curva, elegendo a fantasia de um mundo onde as coisas, como as pessoas, podem se reinventar em total autonomia.
Da sua primeira abordagem da arte pela fotografia, o artista traz uma atenção ao quadro, às geometrias encontra- das nas sombras deixadas pelas grades da cidade, nos contornos dos seus portões e nos padrões das suas calçadas ou praças, ou ainda, simplesmente, no enquadramento da sua própria retina, seu modo de ver e enxergar o entorno.
Em sua primeira individual na galeria Quadra, Marcelo Pacheco apresenta, em As listras da zebra e as coisas sem pais, um recorte de sua produção composto por elementos de mobiliário e pinturas, em uma associação livre de campos de cores e de padrões, na qual pinturas e esculturas-objetos pictóricos se juntam em uma dança despretensiosa.
Bebendo de fontes diversas da história da arte clássica, moderna ou contemporânea, o artista integra, dentre outras referências, uma prática intuitiva que brotou da sua observação do Expressionismo Abstrato americano de Motherwell ou Johns, bem como um automatismo criativo herdado por eles dos surrealistas europeus. Seguindo uma filiação espontânea daquele movimento, Marcelo Pacheco, ao partir de imagens da iconografia popular ou de objetos e tecidos comportando uma carga afetiva, questiona, além do aparente formalismo da sua prática, a diferença entre elementos do cotidiano e obras de arte, explorando o intervalo entre a arte e a vida e dialogando, assim, com artistas como o próprio Rauschenberg (não à toa aluno do Motherwell) ou ainda com obras como “Ode à l’oubli” de Louise Bourgeois.
Ao criar camadas que juntam os diversos repertórios de uma história da arte revisitada, das artes decorativas, assim como um olhar carinhoso para as coisas do ambiente doméstico tais como camisetas, luminárias ou toldos de lojas e barracas de feira, Marcelo Pacheco conversa com os padrões criados ou reproduzidos nas suas infinitas variantes por seus contemporâneos e antepassados e inventa soluções que propiciam esta convergência de elementos diversos. Ele cria uma poética onde a simplicidade e a sofisticação podem coexistir, ao lado de questões próprias à pintura.
Do mesmo modo como as listras da zebra desconcertam os seus predadores e simbolizam a manutenção da individualidade dentro do grupo ou até um certo anticonformismo, as pinceladas do artista borram as fronteiras e hierarquias entre as artes visuais e a cultura popular, revelando, no entremeio, um padrão único, uma visão singela do mundo e das suas coisas, tal uma impressão digital. Neste mundo, a letra da música de Gilberto Gil e Arnaldo Antunes – adulterada pelo ouvido do artista – torna-se outra, e as coisas não somente não têm paz como elas não têm pais: vestidas das suas qualidades de peso, volume, forma, cor ou textura, elas libertam-se de qualquer parentesco para tornarem-se únicas, como as listras da zebra.
As coisas têm peso
Massa, volume, tamanho
Tempo, forma, cor
Posição, textura, duração
Densidade, cheiro, valor
Consistência, profundidade
Contorno, temperatura
Função, aparência, preço
Destino, idade, sentido
As coisas não têm paz
[Gilberto Gil e Arnaldo Antunes/As coisas]
Julie Dumont, The bridge project