Emoção de lidar

Ana Cláudia Almeida, Ana Matheus Abbade, Anna Maria Maiolino, Arorá, Carla Santana, Celeida Tostes, Cyshimi, Diambe, Flora Rebollo, Iagor Peres, Josi, Nise da Silveira e Leon Hirszman, Pablo Lobato, Pedro Victor Brandão e Tadáskía

curadoria Clarissa Diniz

São Paulo, 04 de março de 2023 – 29 de abril de 2023

 

A revolucionária e autodeclarada “rebelde” psiquiatra Nise da Silveira (1905-1999) conta que, certa vez, Luis Carlos, um de seus clientes1, pediu para manipular um pedaço de veludo. Quem acompanhou a cena ocorrida na Casa das Palmeiras – espaço terapêutico livre e aberto inaugurado por Nise em 1956, no Rio de Janeiro – foi Maria Abdo, uma das monitoras do lugar.

Maria contou que, após dobrar o veludo em diversas direções, posicionando-o de modo a “dar-lhe a forma de um gato”, Luis Carlos tomou um lápis e escreveu um poema:

“Gato, simplesmente angorá
do mato,
azul olhos nariz cinza
gato marrom
orelha castanho macho
agora rapidez
Emoção de Lidar”

O verso final, “Emoção de Lidar”, sintetizava a experiência de Carlos não apenas com as propriedades físicas do veludo em sua relação com as mãos e com os olhos, como também sua capacidade de evocar imaginários e a memória afetiva de seu criador.

A efêmera escultura erigida da relação entre tantas agências era, por isso, testemunha do caráter múltiplo da emoção de lidar vivenciada tanto pelo corpo do artista quanto pelo veludo, pelos vazios e pela gravidade, pela avivada imagem ou pela memória de tocar um gato, dentre outras forças entrecruzadas naquele exercício de formatividade, de “dar forma a”.

A precisão do termo “emoção de lidar” tornou-se incontornável para Nise da Silveira pois, desde 1946, quando implementou o Setor de Terapia Ocupacional e Reabilitação (STOR) do então Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II (Rio de Janeiro) – popularmente conhecido como Hospital do Engenho de Dentro e atualmente denominado Instituto Municipal Nise da Silveira –, a psiquiatra incomodava-se com os termos disponíveis para denominar o terapêutico processo de criação que, em sua singularidade médica, ela propunha a seus clientes.

Para Nise, conceitos como o de “labor terapia”, “práxis terapia” ou “ergoterapia” eram insuficientes para dar conta da complexidade de um processo criador que não visava instrumentalizar gestos ou materiais mas, ao contrário, abraçava a generosa radicalidade dos (des)encontros entre corporeidades como mãos e tecidos, dedos e argila.

Diferentemente da terapia ocupacional praticada nos anos 1940, que priorizava “manter o doente em atividade, sem visar, naquilo, especificas atuações psicológicas”, a partir da fundação do STOR, Silveira dedicou-se a “utilizar as atividades como meios de expressão da problemática interna dos doentes, [oferecendo] atividades que pudessem, de alguma maneira, agir sobre essa problemática”.2

Tratava-se não de uma terapêutica que “ocupava o tempo” dos clientes com trabalhos de caráter utilitário, senão da plena aposta no caráter terapêutico e autocurativo da criação, da expressão e do trabalho das mãos e do corpo quando a esses era autorizado moverem-se para além da gestualidade protocolar de fazer bainhas de lençóis hospitalares, bordar iniciais em toalhas ou pintar panos de prato com desenhos pré-estabelecidos: métricas então comumente aplicadas aos corpos das pessoas hospitalizadas sob o pretexto de uma terapêutica ocupacional.

Por isso, quando Luis Carlos enunciou sua “emoção de lidar”, Nise compreendeu ter finalmente encontrado um termo capaz de dar nome ao tipo de trabalho que, não sendo ocupacional, era o que todavia se passava na terapêutica por ela desenvolvida ao longo de tantas décadas em colaboração com clientes, monitores, artistas, interlocutores, gatos, cachorros, pássaros, argilas, madeiras, tintas, dentre outras agências:

“A emoção de lidar com os materiais de trabalho (…). O prazer de lidar, de pegar em lãs, em madeira… Em acompanhar a vinculação do desenho da madeira… Não é “trabalhar em madeira”. Os menos sensíveis trabalhavam a madeira sem prestar atenção nisso, só pensando no objeto que iria sair dali. Mas muitos tinham a sensibilidade para acompanhar os veios da madeira, a aspereza ou a maciez da madeira. Então eu procurava desenvolver esse sentido neles: “Sintam os objetos que vocês pegam. A emoção de lidar e suas consequências”3. 

Ao nutrir a “emoção de lidar”, Nise da Silveira aos poucos dava a ver a dimensão de reciprocidade das agências implicadas no processo de criação. Não eram apenas os clientes que se expressavam, senão também os afetos e as materialidades com os quais estavam a lidar, algo que Fernando Diniz – outro dos artistas que frequentavam o STOR, mais conhecido como Ateliê do Engenho de Dentro – veio a colocar em palavras: “A modelagem tem suas coisinhas, a madeira tem outras. (…) Cada um toca de uma maneira diferente”.4

Tocando as mãos daqueles que as tocavam, materialidades como a argila ou o carvão compuseram o processo terapêutico da “emoção de lidar”. Agora, décadas depois, é esta mesma expressão que, intitulando uma exposição homônima, é convocada como chave para nos aproximarmos da produção das artistas Anna Maria Maiolino, Ana Matheus Abbade, Ana Cláudia Almeida, Arorá, Carla Santana, Celeida Tostes, Cyshimi, Diambe, Flora Rebollo, Iagor Peres, Josi, Pablo Lobato, Pedro Victor Brandão e tadáskía.

Emoção de lidar reúne artistas que, em suas poéticas, têm compartilhado a agência da criação com materialidades, alteridades, corporeidades, espacialidades ou temporalidades que convocam para uma relação criadora.

Distantes dos gestos autoritários de algumas tradições estéticas, essas artistas têm se lançado em processos e experiências de formatividade que existem junto às mãos de outras pessoas, junto às vontades do barro, da água do feijão, da cera ou dos bloqueadores de testosterona, na relação com a luz ou com o vento, junto ao acaso e ao efêmero.

Suas obras se filiam ao protagonismo que Nise da Silveira atribuiu às mãos e aos gestos, ao mesmo tempo que sabem que toda gestualidade se dá em relação, de modo a circunscreverem suas emoções de lidar também em contextos de gênero, de racialidade ou sobre panos de fundos políticos e sociais.

Ao fazê-lo, as artistas atualizam a poderosa e irônica crítica que Nise da Silveira fez ao intelectualismo racionalista que, patriarcal em sua historicidade e machista em sua política de existência e de relação, já nos anos 1940 duvidava da força criadora, expressiva, terapêutica e autocurativa da emoção de lidar:

“Então eu fui a ingênua, a bestalhona, isso nas alturas de 1946, 1947. (…) Um dos espantos meus foi verificar que [os médicos] que estavam em começo de formação analítica não se interessavam absolutamente por esse tipo de pesquisa, (…) de curiosidade. Para mim, era uma coisa política [que os afastava]. Era o trabalho com as mãos. A terapêutica ocupacional trabalha com as mãos. Suas “Excelências” pensam que trabalham com o cucuruto da cabeça, com esse redemoinho que está aqui na cabeça deles. “Pensam”…! ”

Clarissa Diniz

1As pessoas que frequentavam ou estavam internadas nos hospitais e nos espaços terapêuticos nos quais Nise da Silveira trabalhava eram por ela eticamente denominados como “clientes”, marcando uma distinção em relação a termos como “internos”, “pacientes”, “loucos”.

2Depoimento (1986) de Nise da Silveira no filme “Posfácio: imagens do inconsciente” (1986-2014), de Leon Hirszman. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=EDg0zjMe4nA&t=1459s.

3Depoimento de Nise da Silveira na entrevista “Nise da Silveira: do mundo da Caralâmpia à Emoção de Lidar” (1992). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=TvvYrrES_l0.

4 “Nise da Silveira: caminhos de uma psiquiatra rebelde”, de Luiz Carlos Mello, p. 118.

5Depoimento (1986) de Nise da Silveira no filme “Posfácio: imagens do inconsciente” (1986-2014), de Leon Hirszman. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=EDg0zjMe4nA&t=1459s.   

obras