Ervas Daninhas

Allan Gandhi, Darks Miranda, Hiram Latorre, Juliana Cerqueira Leite, Julien Saudubray, Karola Braga, LIUBA, Loren Minzú, Manuela Costa Lima, Manuella Silveira, Maria Martins, Marina Nacamuli, Martin Lanezan, Matheus Chiaratti, Niobe Xandó, Sheyla Ayo, Tiago Mestre, Tiago Tebet e Yan Copelli

curadoria Julie Dumont

São Paulo, 24 de fevereiro de 2024 – 06 de abril de 2024

 

(A política do corpo em fogo do corpo em chamas
do corpo em fogo)
apagando as trevas devoram 
teu corpo em chamas tua boca aberta teu suicídio 
de prazer na grama tuas mãos colhendo meu rosto 
de folhas machadas na escuridão teu gemido à sombra
das cuequinhas em flor teus cabelos são solidamente negros

Abra o olhos e diga ah!
[Roberto Piva 1975]

 

Uma noite de carnaval: corpos suados, máscaras caídas. Beleza e feiura, atração e repulsão se agarram em um abraço febril. Nas ruas de fevereiro, os cheiros se misturam, o belo se encontra no estranhamento, na diferença e na ousadia. Existem mundos para além de Apolo: encantados e embriagantes, sedutores e vertiginosos. 

Celebração pagã e espiritual na sua essência, a arte propicia um momento acima e para fora do tempo, uma Saturnália, um devaneio. Um escape do tédio de vidas mornas, sem relevo, cheiro ou sabor. Mesmo temporário, o efeito de uma única obra de arte pode revolucionar uma vida, se tornando permanente, se estabelecendo como um divisor de águas – para o artista e para o espectador – perfurando a superfície lisa da sociedade, os artistas navegam nos rios turvos do que existe lá fora, procurando testar e ultrapassar os limites, seguindo uma única imposição vinda das entranhas: a intuição que desperta no breu da madrugada, que deixa o coração acelerado e não dá lugar ao descanso.

Ser artista é afirmar diariamente um desejo, uma liberdade, questionar e proceder a destruição formal de contextos limitativos ou opressivos. Este exercício deliberado de aniquilação está assim na gênese do vídeo The Journey de Tiago Mestre. Nele, o artista amassou, um a um, os cartões de visita de uma vida que ele não queria mais, e os jogou na tela do seu celular como tantos gritos, criando uma galáxia de mundos possíveis. Uma busca existencial que ecoa também nas pinturas de Julien Saudubray, que revela imagens fugazes sem tentar capturá-las de forma definitiva, deixando a cor e a forma vibrar na diluição e na repetição das camadas de tinta.

Criadores de enclaves livres nas quais jorra a fantasia poética, os artistas também são os clínicos do mundo, medindo o seu pulso, entregando o prognóstico da sociedade e receitando doses generosas de selvageria, caminhadas descalças nas trilhas da floresta, banhos de ervas e festas ao redor da fogueira. Esta selvageria – da natureza e a nossa –se encontram no Sol de Martin Lanezan; no fogo, nos troncos e nas águas de Loren Minzú, das esculturas de Tiago Mestre ou ainda na terra-corpo-urna de Juliana Cerqueira Leite, portadora do seu próprio ambiente metamórfico. A sensualidade bárbara das silhuetas cipós de Maria Martins, a floresta erguida de Liúba Wolf e o microcosmo de cura e veneno retratado por Sheyla Ayo evocam o mesmo terreno fértil, lugares ancestrais dos quais a vida brota generosa, sara e destrói. 

A força desta pulsão rompe as grades da colonização dos corpos, dos seus veículos de expressão, descanso e desabafo. Plantas crescem no cubo branco e membros chacoalham livres, como em um dia de carnaval. Estes micromundos se refletem na Flor fantástica verde de Niobe Xandó, que oscila entre alegoria popular e bacanal botânica. As suas plantas canibais, sinuosas, dialogam assim com a sedução háptica da flor aveludada de Tiago Tebet, ou ainda com os sulcos deixados por Manuella Silveira nas camadas de pintura, esboçando, à medida que aplica ou raspa, os contornos de criaturas e paisagens fantasmagóricos, livres de definições. Os seres híbridos surgidos das mãos de Darks Miranda e Yan Copelli também parecem fugir de qualquer categorização e evocam um tipo de metamorfose de um estado para outro, possivelmente uma libertação. Assim, o Ovo-aranha de Miranda parece prestes a se abrir e deixar sair um ser alienígena, enquanto uma língua de bronze jorra tal um rio do seu berço de cerâmica – quiçá transmutando a repulsão em um prazer sem culpa- na Boca grande de Copelli.

Como a seiva nas plantas, a energia que pulsa nas veias dos transeuntes serpenteia nas ruas da cidade, entre os seus arranha-céus de carniça e os seus viadutos. Entre flânerie e raios exploratórios, ela vibra nos versos dos seus poetas, se espreguiça no fundo dos copos vazios, nos lençóis amassados dos amantes e nos cheiros ali capturados. Assim, Karola Braga cristaliza a essência olfativa de uma paixão, enquanto Hiram Latorre pinta, em Uma ideia de amor, a sua encenação. Mundos em chamas também se encontram nas fotografias de Marina Nacamuli. Criaturas da rua, da noite, da festa, trajetórias e olhares cruzados, encontros fugazes e trocas eternas. Existe beleza no caos, nos incêndios dos corpos, nas suas curvas e potenciais enlaces como parecem sugerir também Allan Gandhi na sua pintura intuitiva e expressiva, e Matheus Chiaratti com a sua instalação Ricardo-Lázaro. Nela, o artista invoca o fantasma do modelo de revista gay Ricardo Villani, falecido repentinamente da sua ascensão à sua queda. Entre Eros e Tânatos, sagrado e profano, Chiaratti ainda dialoga com a escultura Livre arbítrio de Manuela Costa Lima, que tensiona os conceitos de luz e escuridão, objetos descartados e ressignificados, transcendendo e enchendo o vazio que existe entre os corpos e a cidade que os envolve. 

Entre submundos e gozo; jogo, festa e baile de máscaras, loucura, natureza e liberdade, os artistas reunidos em Ervas Daninhas falam do sangue que pulsa, do erótico, das emoções e da dança. Eles fomentam insurreições e nos guiam nas vielas escuras da Babilônia, nas avenidas cobertas de glitter, confetes e garrafas vazias, ou nas trilhas lamacentas da floresta.

Exaltam o dionisíaco, a desordem do real, o poder disruptivo e transgressor da arte sem o qual sufocamos; a liberdade de onde brota e propicia novos ares. Como cipós e ervas daninhas que crescem, sinuosos e se infiltram na superfície lisa das convenções, colocando em movimento as águas paradas da vida burguesa, perfurando e rompendo o pavimento das nossas calçadas. 

Julie Dumont

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