HEAT
Ana Cláudia Almeida, Antônio Simas Xavier, Arorá, Daniel Albuquerque, Daniel Frota de Abreu, Emilia Estrada, Gabriel Junqueira, Guga Ferraz, Gustavo Torres, Isabela Sá Roriz, Luisa Brandelli, Matheus Chiaratti, Tatiana Chalhoub, Thomaz Rosa, Vanderlei Lopes, Yasmin Guimarães e Zé Tepedino
curadoria Victor Gorgulho
Rio de Janeiro, 31 de março de 2022 – 13 de maio de 2022
Rio de Janeiro, abril de 2032.
Você já viu um amanhecer? Já viu o sol que faz de manhã? Deus é assim – sempre foi um exagerado. Deparou-se com a frase ao abrir bruscamente o livro empoeirado na cabeceira ao lado da cama, ainda de olhos quase fechados. Acordou de sobressalto, o céu ainda lúgubre, visto pela fresta da janela de seu quarto sujo: uma ampla e antiga suíte de um hotel há décadas em ruínas, no Centro da cidade. Era o único a ocupar o prédio, um robusto bloco de concreto neoclássico encravado no asfalto, situado exatamente no ponto onde o mar um dia chegava. Mas isso há mais de século atrás: logo depois tudo seria aterrado; a cidade e também as utopias douradas da soberba e controversa antiga capital do país. Sem retornar ao sono, decidiu rascunhar pensamentos soltos em um caderno jogado no chão, ao lado de sua cama:
As manhãs nascem sempre abstratas, difusas. Vagarosamente, desvelam suas úmidas camadas de peles cor de pêssego, laranja e rosa-claro, em opulentos gomos úmidos de tangerina, abóbora e algodão doce. As manhãs não têm som. E é plenamente nelas quando o céu exerce seu mais nobre papel, ao revelar-se um monumental cinema involuntário, atravessado por aves negras e manchado por pequenas partículas de nuvem, poeira e lixo sideral. É só pela manhã que o céu desempenha tal função: ao desenrolar-se, o dia o inibe de entrar em cena solo. É então entrecortado por aviões, sujeira e pó.
Despejou o caderno e o lápis sobre o lençol manchado em direção a janela sem vidros do quarto, moldura exata para a presunçosa paisagem do balneário. O céu, de algum modo, lhe parecia diferente, tomado por tons de ouro, roxo e azul-febril, velozmente a rasgar o horizonte do mar em direção à paisagem urbana. Achou estranho, mas também poético. Aquietou-se. Nunca sentiu medo ao pensar que um dia a natureza carioca poderia reclamar de volta para si sua paisagem primeira. Lavada, esplêndida, deliciosamente quieta sem a balbúrdia humana.
Desde o ano de 2022, quando a cidade havia registrado temperaturas recordes que viriam a crescer ainda mais nos anos subsequentes – em assombrosa velocidade e fervor – o Rio de Janeiro testemunhava uma espécie de evacuação em massa de seus habitantes. Os mais abastados tomariam o rumo de Portugal, Miami ou Marrakesh. Os verdadeiramente ricos até para Marte se arriscaram em ir, dispostos a reproduzir seus condomínios assépticos na superfície de um outro planeta. Aqueles que por aqui permaneceram, geralmente tomaram de assalto as cidades do interior, distantes da costa, agora densamente povoadas e protegidas pela vegetação que restara, após as sucessivas décadas do desastre tecnocêntrico provocado pela ganância e pela burrice humana.
Em 2032, a Mata Atlântica era uma espécie de lembrança distante, uma mancha verde esmaecida, uma paisagem invertida. Era como se a cidade tivesse sido forçosamente convertida em um sítio arqueológico povoado apenas por seus mais destemidos amantes; ciganos e flâneurs a percorrer diariamente suas ruas em busca de comida e de um refúgio qualquer. Diziam, até, que nos meandros mais escusos do que restou da Floresta da Tijuca, grupos de jovens anarquistas – os tupinipunks – realizavam rituais canibais, em uma estranha atualização e homenagem dos ritos típicos de alguns dos primeiros habitantes das terras de cá.
O mar, por sua vez, havia secado quase por completo, deixando apenas parcos resquícios de sal e espuma sobre o asfalto, por onde repousavam vestígios das mais diversas naturezas: lamparinas ainda acesas em um frenesi trôpego, pedaços robustos de monumentos republicanos com dizeres enigmáticos, toda uma gama variada de uma memorabilia afetiva do que um dia havia sido aquela tal cidade maravilhosa. A tela de um antigo cinema pornô – arquitetura engolida pela virtualidade e encoberta por escombros dos prédios espelhados – apareceu delicadamente dobrada nas redondezas do Passeio Público. Há quem tenha visto e garanta sua aparição, ainda que fotos de smartphones não pudessem mais comprovar tais descobertas. Não havia sinal e nem horizonte, apenas selfies sonâmbulas a vagar pela paisagem crepuscular.
Naquela manhã de abril de 2032, do último andar da ruína do hotel, gritos e ruídos distantes repentinamente invadiram o prédio. Era o sol, implacavelmente anunciando uma bizarra e irrevogável aproximação da cidade. Melancolia tropical?, pensou, soltando uma risada tímida. Um a um, os termômetros que ainda estavam a funcionar nos relógios públicos das esquinas da cidade entraram em disparada e explodiram, ainda que sem causar espanto ou terror. O sol estava de fato a engolir a cidade, a degustá-la, em um inesperado banquete diurno que abocanhou tudo que ainda ali estava. Uma espécie de brunch dos astros, a via láctea em festa.
Restava, então, gozar: o calor não era nem mais um impasse, mas sim o desencadeador de um torpor estranhamente prazeroso, química pura a percorrer o corpo da cidade por inteiro. A fatídica manhã de abril de 2032 anunciava-se não como um desastre ou um pesadelo distópico. Tampouco era uma imagem apocalíptica de um filme-b qualquer. Tratava-se, sim, da realidade mais justa e previsível, inegociável no acerto de contas entre a natureza e a espécie humana.
O Rio de Janeiro nunca havia sido nosso, sabíamos. Paisagem insubordinável, cidade espremida entre as montanhas e o mar, agora imprensada debaixo de um desconcertantemente belo céu em brasas. O calor era tamanho que se assemelhava ao frio, a apatia gelada do abandono e do fim. Chiaroescuro a cobrir o balneário. Do alto da ruína do hotel – minutos antes da inevitável colisão com o sol – esboçou uma derradeira admiração pelo astro-rei, ainda mais belo quando visto de perto, espécie de escultura amórfica de bronze, cerâmica e tinta à óleo. A pintura nunca daria conta de representá-lo, pensou em despedida. Sentiu-se consternado e feliz, estranhamente aliviado, afinal. Era a paisagem, novamente, a tornar-se dona única de sua exuberância e esplendor. Uma vez mais e, quiçá, para toda a eternidade.
Victor Gorgulho