Noite fria fora de época

Allan Gandhi e Marcela Dias

curadoria Carollina Lauriano

Rio de Janeiro, 26 de janeiro de 2023 – 25 de março de 2023

 

“Nada é mais abstrato do que a realidade”, disse Giorgio Morandi, em meados do século passado. Eu sempre recorro a essa frase do pintor italiano em momentos que a vida parece escapar à nossa compreensão, o que me aparenta ser uma citação interessante para pensar as emoções e sentimentos que passaram a nos rondar e afligir nos últimos três anos, momento o qual o mundo nos pegou de surpresa, mudando repentinamente o curso da história em um curto período de tempo.

Noite fria fora de época evoca uma livre interpretação poética sobre esse período em transformação, a partir dos trabalhos de Allan Gandhi e Marcela Dias. Se muito especulou-se sobre a sociedade poder aproveitar esse momento de tantas incertezas para atravessar o período criando mudanças significativas de comportamento em relação a era da hiperconectividade e hiper estímulos que marca esses primeiros anos do século 21, o que observamos foi um retorno à convivência muito mais eufórico e animoso.

Por isso, essa mostra se centra no trabalho de dois jovens pintores. De todas as linguagens artísticas, a pintura talvez seja a que mais se reafirma, o tempo todo, como um caminho inverso e extremamente potente contra as complexidades e paradoxos do mundo contemporâneo. O conjunto de pinturas recentes de Gandhi e Dias tensionam, de formas complementares, tais questões.

Primeiro porque a própria materialidade e a fatura do objeto demandam por presença, seja do próprio artista, seja do espectador. Essencialmente, a produção de ambos artistas é resultado de um trabalho de ateliê rigoroso. Um comprometimento notável sobre a pesquisa e o próprio fazer artístico. Em comum, ambas produções não se revelam imediatamente. São pinturas que exigem demora. Com isso, esse fazer convoca quem observa a deter-se atentamente sobre a superfície das telas, descobrindo, aos poucos, seus mistérios.

Inclusive, essa é uma das premissas das pinturas de Marcela Dias. Em suas composições, interessa a artista pensar sobre o pentimento, esse processo no qual uma alteração é executada numa pintura enquanto sua feitura está em andamento. Em uma sociedade cuja atuação digital tem pautado uma edição da vida que apresenta um estado constante de perfeição, as pinturas de Dias nos apontam um caminho contrário. Interessa a artista pensar no erro como um lugar de construção e entendimento do próprio fazer artístico.

Outro ponto de interesse da pintura da artista é o jogo de camadas que ela cria em sua construção pictórica. Ao invés de procurar esconder as imperfeições, Dias opta exatamente por revelá-las. Movimentos estes que deveriam, muito bem, serem incorporados com maior naturalidade nas dinâmicas sociais. É dessa aparente vulnerabilidade que sua pintura apresenta, que a artista cria um campo de força para seu conjunto de trabalho.

Já as pinturas de Allan Gandhi trazem outras perspectivas para a discussão. Embora sua pintura abarque uma meticulosidade em seu fazer, o processo criativo de Gandhi incorpora um fazer completamente intuitivo. Sem criar esboços que guiam suas composições, ele nos aponta que, por muitas vezes, é preciso abrir mão de noções de controle e racionalização, e abrir-se mais à experimentação. Desse modo, boas surpresas podem acontecer.

É o caso da ambiguidade constantemente presente em suas composições. Transitando entre a abstração e a figuração, as formas fluidas e os contrastes cromáticos da pintura de Gandhi nos desafiam a questionar o que está diante de nossos olhos. Em outro ponto, tal conjunto de pinturas do artista me remete a uma jornada do homem em embate interno e externo consigo próprio, uma vez que os tons mais ácidos me remetem a uma ideia de estado alterado de mente, há também uma busca por uma mimese com a natureza e a busca por novos horizontes. Sol como órbita, mas também como oráculo.

Diante desses tensionamentos que vão surgindo a partir das investigações pictóricas de Allan Gandhi e Marcela Dias, surgem como possíveis caminhos para repensarmos nossas práticas individuais e coletivas. Se, por um lado, temos um mundo contemporâneo que nos força, cada vez mais, a reproduzir padrões mais e mais inalcançáveis de modelos de sucesso, o diálogo entre os artistas é uma forma de dizer que é preciso recalcular rotas e encarar a vida por outras perspectivas, com um pouco menos de alarde e estando mais aberto para as vontades – contraditórias, secretas, subjetivas, – da nossa vida comum, cotidiana, e buscar a beleza nisso.

Carollina Lauriano

obras