Novos Ventos
Yasmin Guimarães
curadoria Lucas Albuquerque
São Paulo, 20 de abril de 2024 – 10 de julho de 2024
Habitar o mundo pelas bordas
Sob as inofensivas camadas de cor e traçados que compõem as paisagens produzidas pela arte ocidental, complexos emaranhados de construções simbólicas foram construídos e atualizados ao longo do tempo. Opondo-se à indomável e imponente desmesura da natureza, o gênero paisagem promove a domesticação do natural mediante sua ordenação. O enquadramento da imagem, por vezes bucólica, romântica ou mesmo voraz, pressupõe no extraquadro a continuação de uma beleza sublime, tornada tangível ao humano por meio de um enunciado cultural. Seja pela perspectiva renascentista, pela construção simbólica bizantina ou pela transposição fugaz modernista, tal vontade de representação refaz, pela ordem do sensível, um desejo de controle do Ocidente típico ao antropoceno. Ergue para si a máxima: tudo fazer ver para dominar.
Promovendo a perturbação de tais constructos visuais, a artista Yasmin Guimarães constrói paisagens que ora flutuam por horizontes instáveis e movediços, ora fazem pouco caso de uma verossimilhança com o natural. Mais interessada no aspecto fenomenológico da impressão retiniana da cor em um relevo imaginário, Yasmin faz da dureza da luz tropical o tônus de sua pintura. Refletindo sobre as cores que banham os trópicos em que vive e por onde habitam suas primeiras lembranças de paisagem, a paulistana substitui os tons alaranjados e quentes por uma paleta de cores fria, e assim estabelece com o espectador um encontro honesto, indispensável para a sua obra. Indispensável sim, pois qualquer imposição de uma outra imagem referencial que se sobreponha às suas telas é um contratempo. É preciso aceitar o tom despretensioso, quase inocente, da cena para se deixar conduzir pela leveza de suas pinceladas.
Das maneiras com as quais Yasmin tece novos horizontes, há três procedimentos que eu gostaria de explorar neste ensaio crítico, pois não denotam necessariamente fases de sua jovem produção pictórica ou escolhas conscientes, mas modos de encarar o vazio que podem ou não coexistir em uma mesma obra. Na primeira delas, a cena se constrói por camadas de tintas que adensam a tela em gradações que variam sutilmente entre tons. Formam uma espécie de nevoeiro, cujos movimentos de cor circulam pela superfície em ritmos por vezes serenos (quando funcionam como fundo ou como objeto de reflexão), por vezes enérgicos (ao serem delimitados por bordas acachapantes). Nessas ações, a artista contempla o horizonte pelo acúmulo de sensações retinianas que apreendem, como metonímia, a parte pelo todo — a impressão de um conjunto de cores em tênue variação para aludir à elaboração de uma cena. Cena-paisagem, decerto, mas apenas ancorada à vaga lembrança subjetiva daquele que a vê, pois nenhuma das telas carrega, nem em seu título nem nas anedotas de sua criadora, a referência a um externo.
Em outro gesto, Yasmin representa uma divagação poética das qualidades imateriais da natureza por meio de um trabalho de subtração. Nessas pinturas, um certo pontilhismo solto é utilizado de modo a criar rastros de cor que ora se concentram em partes da cena, ora deslizam pela superfície, podendo ou não extrapolar os limites da tela. Em pontos de cor, raramente sobrepostos de maneira direta, a artista ambiciona representar o vento, a fina camada de cor que recobre as bordas de montanhas e vales, gotículas de chuva ou até formações de nuvens — estas últimas feitas em gestos rápidos de tinta molhada ou em fricções do pincel encharcado em óleo quase seco. A coreografia das partículas varre a pintura de forma enérgica, condensando fenômenos naturais complexos em zonas de cor que fluem pelo espaço pictórico. Dão a ver o fundo cru do suporte, geralmente em linho de cores variáveis, sobre o qual Yasmin propõe uma interação entre a fibra vegetal e os motivos de suas cenas.
Há, ainda, um terceiro procedimento da artista que, não contente com a dureza do linho, suspende suas pinceladas em delicadas tramas de voil que exibem o seu próprio chassi. Aqui, a construção simbólica da cena como paisagem se desconstrói em alegres e rápidos traços de tons pastel, desvelando àquele que vê o intrínseco artifício da ilusão. Curiosa dicotomia, já que faz desmantelar a qualidade ilusória oriunda de uma tradição pictórica realista comum ao gênero de paisagem, tornando-o opaco como materialidade e enunciado cultural mediante o uso de um anteparo translúcido que revela a sua estrutura. É em um gesto tão sutil e repleto de beleza que, com ele, Yasmin atesta não se atrelar a uma herança ocidental que buscava o domínio do seu entorno pela apreensão visual do mundo, mas em sua experiência estética sensível. Tão modesto quanto espirituoso, o óleo se despe de sua seriedade e flui como o vento, embarcando na onda de sua criadora.
Nesses gestos, a artista revela, pouco a pouco, que seu interesse pela matéria das coisas que envolvem o mundo é menor do que pelas suas lacunas e bordas. Atraída pelo vazio, suas elaborações pictóricas parecem mais afeitas à construção da natureza sob um cânone visual oriental que, sob a influência do taoísmo, reflete sobre o entorno com a representação da vitalidade das formas e seu movimento rítmico demarcado pelo contorno do pincel, na busca por abstrações que sugiram o extrafísico. A criação surge como possibilidade de revelar o vazio. Contrasta, assim, com os ideais ocidentais, cuja perseguição por uma forma plástica orgânica ainda retém vestígios em nossa maneira de vivenciar o mundo, tanto na pintura como no regime de imagens técnicas, em um completo horror ao vazio. Em sua prática, Yasmin transforma a árdua tarefa diante do vazio em regozijo vital. Amiúde, suas composições mais espirituosas são aquelas em que os lampejos de tinta encontram campo livre para navegar, deleitando-se na fluidez eterna que revolve a placidez.
Lucas Albuquerque