





O ouro e a madeira
Advânio Lessa, biarritzzz, Carla Santana, Caroline Ricca Lee, Gilson Plano, Iagor Peres, Jonas Van, Lu Ferreira, Paula Trojany e Wisrah C. V. da R. Celestino
curadoria Ariana Nuala
São Paulo, 15 de fevereiro – 05 de abril de 2025
Há uma força latente que emerge ao contemplar a madeira e o ouro, elementos que não apenas coexistem, mas se entrelaçam em dimensões simbólicas e materiais, desafiando as fronteiras de uma existência fragmentada. O ouro e a madeira possuem propriedades físicas e geológicas distintas que influenciam seu comportamento tanto na terra quanto nas águas. No mar, a madeira flutua devido à sua estrutura porosa e leve, enquanto o ouro, denso e compacto, afunda. Essa dinâmica reflete uma interação natural com a gravidade e a densidade da água, marcando o contraste entre leveza e peso.
Na terra, a madeira cresce a partir do solo, completando um ciclo de vida ao retornar a ele em sua decomposição. Já o ouro também surge do solo, mas é fruto de processos geológicos profundos e lentos, moldado por movimentos tectônicos e sedimentação. Encontrado em leitos de rios ou veios rochosos, o ouro carrega consigo uma aura de permanência, contrastando com a efemeridade da madeira.
Dialogando com diferentes cosmovisões, a exemplo da filosofia tradicional chinesa, onde ambos integram o ciclo dos cinco elementos. A madeira representa a energia que ascende e cria, sustentando o metal, que condensa e protege. Esse equilíbrio sugere uma dança de continuidade e reciprocidade, desafiando a separação entre o rígido e o etéreo, e inspira práticas medicinais que pulsam vitalidade. Em outra leitura, no Candomblé de origem iorubá, essa relação ressoa na união de Oxum e Oxóssi: Oxum, senhora das águas doces e do ouro, flui como um rio que nutre e molda; Oxóssi, orixá da caça e das florestas, manifesta-se na madeira que sustenta e na flecha que avança. Juntos, reforçam a ideia de que o valor reside na conexão — entre o que nasce e o que perdura, entre o brilho do metal e a vitalidade da madeira.
Ederaldo Gentil, compositor baiano, nos diz em sua canção chamada O Ouro e a Madeira: “O ouro afunda no mar (no mar) / Madeira fica por cima (por cima) / Ostra nasce do lodo (do lodo) / Gerando pérolas finas”, este trecho que sintetiza o seu título da música que dá nome à exposição, atrai uma espécie de materialidade fônica que transcende a forma, tornando-se vibração. Fred Moten ilumina essa dimensão ao sugerir que os objetos têm voz, que sua matéria carrega uma auralidade irreprimível. Esse som — um grito ou uma reverberação — rompe hierarquias e desafia dicotomias entre espírito e matéria, criando uma tessitura que vibra entre o visível e o inaudito.
No entanto, ouro e madeira não são apenas símbolos poéticos ou cosmológicos; são também testemunhas de relações de poder e acumulação que atravessam a história. A leitura histórica destaca as repetições que associam o ouro à riqueza e ao domínio, carregando em seu brilho as marcas da violência colonial, do saqueio de territórios e da imposição de sistemas econômicos que reduzem vidas e paisagens a mercadorias. A madeira, por sua vez, evoca a retirada de florestas, a conversão de ecossistemas em bens de consumo e a construção de estruturas que sustentam arquiteturas de poder, a destruição.
Sob essa perspectiva, a exposição propõe um jogo sobre o valor, desafiando as estruturas que o definem, e que persistem em o orientar. Ouro e madeira, na história da acumulação, revelam a lógica de um mundo moldado pela concentração de riquezas, pela separação entre o que é possuído e o que é privado.
Os elementos carregam a potência de redesenhar o que consideramos valioso e como nos relacionamos com o mundo. Recusando a insistência histórica, mas inquietos com as dinâmicas que isolam e subjugam, somos desafiados a criar formas de convivência e reciprocidade, assim ouvir o que a madeira e o ouro têm a dizer. As obras neste sentido não devem estritamente se relacionar com esses elementos, mas conduzem a partir de outras materialidades as divergências entre valor para um mundo – colonial – que se auto degrada e as insistentes caminhadas até o sol que fogem desta destruição.
Dentro deste sistema, as obras orbitam em relações de contraposição de maneiras distintas. Na produção de Trojany, essa dinâmica se manifesta em imagens que nos encaram de volta, desafiando os limites entre observador e observado. Como em uma ironia panóptica, sua obra frequentemente inverte as posições de poder no ato de ver, instaurando um jogo em que aquilo que é exposto também nos devolve o olhar — não como objeto passivo, mas como presença que interroga e desloca quem o contempla.
biarritzzz conduz sua investigação como uma arqueóloga do virtual, sondando as fronteiras entre arquivos digitais e sua obsolescência. Sua prática subverte a lógica dos bancos de imagem, onde todo recorte carrega um deslocamento e toda edição é um ato de magia. O valor da mídia permanece instável, ao mesmo tempo orientado e desorientado pela artista, criando camadas entre o que pode ser capturado e o que sempre escapará.
A medida, enquanto processo, inscreve-se na exposição como um traço em constante negociação. Mais do que uma métrica associada à valoração, ela se desdobra em mapas, diagramas e outras formas de organização que buscam estabilizar o que, por essência, desvia. No entanto, as obras de Wisrah e Gilson Plano rompem essa lógica ao desarticular os objetos dessas medições — seja ao projetar o corpo em um plano suspenso, seja ao desafiar a materialidade daquilo que se pretende fixar, desconstruindo os contornos do mensurável.
Gilson investiga as camadas do que não está necessariamente visível, mas se manifesta no espaço como aparição. Seu trabalho se debruça sobre o peso da matéria invisível, aquilo que, dissolvido, pode momentaneamente se condensar e tornar-se perceptível. Em suas composições, a visibilidade é efêmera, como um vislumbre que se impõe antes de desaparecer. Wisrah, por sua vez, em um gesto reiterativo, reencena o que tem forma, mas pode sempre ser apresentado de outra maneira, expandindo possibilidades de leitura. Em seus trabalhos, elementos aparentemente estáveis e triviais tornam-se capazes de escavar questões biográficas e ampliar códigos de atuação.
A matéria escultórica se manifesta com força nos trabalhos de Iagor Peres e Advânio Lessa, ambos interessados na energia intrínseca dos elementos que utilizam. Suas esculturas são corpos em contração, desenvolvendo-se a partir das relações específicas entre matéria e ambiente. Enquanto Advânio trabalha com madeira e Iagor com metal, ambos observam como temperatura e umidade afetam suas obras, fazendo com que reajam de maneira orgânica. Para eles, esses materiais não são inertes, mas entidades vivas, atravessadas por vibrações e transformações constantes.
A relação de valia também se manifesta no trabalho de Jonas Van, que constrói fabulações em torno das pedras — compreendidas não apenas como materiais preciosos, consagrados em diversas culturas, mas também como elementos costurados ao corpo trans e constituintes dele. Jonas investiga como a monstruosidade pode ser atravessada pela metamorfose, tornando-se valiosa e nunca obliterada através da amálgama de substâncias. Trabalha com quartzo, ametistas, turmalinas, obsidianas e outras pedras, atribuindo a esses minerais possíveis processos de transfiguração — não para refazer estados de violência, mas para instaurar uma alquimia ancorada na vitalidade da vida.
O íntimo e o resguardado — o lar em seus arquivos — se desdobram na obra de Caroline Ricca Lee. A cada objeto tocado, emergem tramas de histórias entrelaçadas à escolha dos materiais, em um processo de retroalimentação energética que dá forma a espécies de altares. Fotos, tecidos, madeira, porcelanas, arquivos analógicos e feituras que percorrem múltiplas mãos compõem seus trabalhos.
Quase como uma coleção de pequenos artefatos, sua obra manifesta uma presença coletiva, revelada na quantidade de corpos que se inscrevem em cada elemento. Independentemente da escala, do tamanho ou do peso, o que os define é o grau de valor ali depositado.
Por fim, os trabalhos de Lu Ferreira e Carla Santana apresentam paisagens pictóricas em constante transformação. Carla se detém na expansão do próprio barro, criando telas e esculturas que revelam a diversidade de corpos contidos em cada fragmento do material — suas variações de metais, minerais e outros elementos microscópicos. Já Lu faz da água um agente de dissolução, borrando as superfícies de suas pinturas, encharcando-as, lavando-as e tornando ainda mais turvos os possíveis cenários, recusando o compromisso da explicação, do detalhamento ou da organização de cada imagem.
Ariana Nuala