Quando o raio bate na areia

Iagor Peres

texto curatorial Ariana Nuala

São Paulo, 27 de maio de 2023 – 22 de julho de 2023

Sei que nada será como está
Amanhã ou depois de amanhã
Resistindo na boca da noite um gosto de Sol¹
 
São imprevisíveis e variáveis as forças que atraem os raios em sua queda do céu para a terra. Quando há excesso no campo energético, os raios se orientam para fora das nuvens, apresentando seu corpo luminoso na atmosfera e ocasionando também explosões de calor quando entram em contato com qualquer matéria.

No caso da areia, como o seu lugar de pouso, o raio ocasiona, nos diferentes grãos que estavam ali, uma força de suspensão a partir da intensidade de sua chegada. As partículas recebem, as- sim, a transferência de uma energia advinda deste lampejo e que remodela sua estrutura molecular, formando-se através de novos arranjos. O movimento transformador que acontece durante a queda é invisível para o corpo humano; a fusão entre o raio e a areia pode nos causar arrepios, mas seu processo de interação é completamente fugaz aos nossos olhos.

A complexidade de um fenômeno atmosférico como um raio nos diz sobre a dificuldade de dimensionar a precisão de sua dança. Além da necessidade do descarregamento elétrico, há também uma atração ainda desconhecida sobre a exatidão do lugar de sua queda, mesmo na existência de características recorrentes desses lugares.

Gosto de pensar sobre o encontro do raio com a areia como um motim de desejo, assim como a prática de manipulação dos metais, exercício que é feito por muitas pessoas há milênios. Na vontade latente deste fazer, deu-se o ato de soldar: uma experimentação que ocorre de várias formas e que busca solucionar a união entre metais. Este encontro com os metais é visto por muitos como um processo de sobrevivência na Terra, mas nos evoca também, talvez, um desejo não dito e não sabido.

Forjar, soldar, fundir são algumas das formas de manipulação de metais. Quero, aqui, me atentar ao soldar e seu processo de fusão. Diferentemente da fundição, em que existe a necessidade do derretimento das peças, na soldagem há uma ligação entre um elemento e outro, que podem ser de tipos distintos de metais.

De um ponto a outro, é iniciado esse fazer, que muitas vezes é visto como algo a ser ocultado, ou seja, sua presença é escondida para a valorização do acabamento da peça a ser montada e da técnica de quem a preparou. Refinamento este cada vez mais apreciado pela indústria e cada vez mais galgado por mãos robóticas.

Sendo assim, Peres apresenta desenhos feitos a partir de combinações entre ferro e outros elementos, como aço de carbono, um dos tipos mais comuns de aço e que é bastante usado por indústrias metalúrgicas, e com o aço inoxidável, que combina ferro, cromo, carbono e níquel.

Peres chama de desenho as sete obras, entre elas as seis da série lampejos e a singular Linha de fogo, que desafia os outros desenhos em sua dimensão e aparente instabilidade. Esses trabalhos, compartilhados por Peres na exposição, se formam em uma composição em deslocamento, como quem descobre uma linha quando percorre um papel. A linha que passeia pelo papel se cria no gesto da pessoa que a desenha. Dessa mesma maneira, Peres passeia pelo espaço experimentando e descobrindo caminhos a partir dos indícios oferecidos pelas matérias.

Voltamos, então, para a imagem de um raio que cai sobre a areia. Quais são as relações ali criadas? O que é abandonado e o que se transforma?

A presença escultórica se torna então consequência, afastando-se de uma ideia de objetivo final ou resultado. Este processo, ainda, é marcado pela possibilidade de uma continuidade, pois, neste caso, o papel não teria bordas. Esta proposta aprofunda sua investigação sobre o movimento, mas em movimento. O artista, insistentemente, desenha esses acontecimentos que aparentemente continuarão fugazes a nossa retina.

A visão da pessoa que solda é muitas vezes coberta por lampejos, esses longe de estarem na grandeza de um raio, mas fortes o suficiente para serem vistos como perigo. Para a pessoa que solda, talvez o maior impedimento seja o ofuscamento de sua visão que é causado pela intensidade da luz, além do próprio calor e dos detritos que são liberados pela soldagem. A poeira e a alta emissão de lampejos também se traduzem em um limite da retina – a partir de um determinado momento, não há mais a chance de acompanhar o que acontece durante o momento de fusão.

Nosso corpo mais uma vez é movido para fora.

O ponto de investigação de Iagor Peres começa então aí: como podemos aprender com essas relações que são invisíveis aos seres humanos? Quais exercícios podemos fazer para extrapolar nossa corporeidade? A quem interessa extrapolar a corporeidade humana? Pesos, tamanhos, direções e fluxos aparecem como elementos que constantemente podem estar atrelados ao deslocar-se.

Sendo assim, observando os metais presentes em Linha de fogo e na série lampejos, como também na pelematerial (materialidade gestada por Peres a partir da mistura de elementos orgânicos e industriais, como cacau e cola, que são cozidos, banhados, maturados e recozidos formando uma corporeidade que possui movimento próprio e estados difusos), revemos o questionamento sobre as condições deterministas que foram impostas a certos corpos.

A pelematerial é impressa na série de monotipias intitulada A segunda ausência da forma, onde seus rastros podem ser percebidos sem a presença de seu corpo. Seu suor é gravado no papel, que depois é atravessado por uma camada de cera de carnaúba, ativando-a com outro elemento que permite sua abertura para a luz, onde temos a sensação de vislumbrar seu interior. Peres continua investigando as atuações e canais de força que ainda permanecem operando contra a dança dos corpos.

Tentei imaginar a possibilidade de estar presente quando a queda de um raio atingisse a terra. Assim, pensei em uma cena próxima ao mar, com areia escura, mas que, quando a noite caísse, se tornasse possível mirar e ver os grãos brilhantes que também formavam aquela mistura.

Poderia eu ver, mesmo que em camadas superficiais, as diferenças entre alguns grãos, seus tamanhos e texturas, suas formações a partir de conchas, escamas e tantas outras coisas mais, porém a dimensão daquela imensa pequenez seria impossível para mim.

Desta mesma forma, quando o raio batesse na areia com sua força lampejante, ele me tiraria de eixo, mais uma vez colocando meu corpo para fora de uma firmeza calculável, possivelmente deixando uma sensação desnorteadora.

Ariana Nuala

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