Submersiva ato II: Coadunar / Odor vivo

Ana Cláudia Almeida e Carla Santana

curadoria Ulisses Carrilho

Rio de Janeiro, 29 de janeiro de 2022 – 25 de fevereiro de 2022

 

Bom mesmo é estar debaixo d’água

Misturam-se ao rumor do mar,
mas são e serão sempre o que são:
ecos de tentativas de conversa
[Ricardo Aleixo]

Uma urgente reavaliação da violência imperial, colonial e, uma atualização de ambas, aquela do estado nacional – carregam diferenças entre si, entretanto reúnem uma ética que fia-se na frágil ideia, historicamente perpetuada, da soberania de uma forma de vida sobre outras – vem reinventando não apenas as formas que produzimos, plasticamente e conceitualmente, imagens, ideias e experiências no campo da arte, como também as formas com as quais emprestamos sentido ao mundo. Abordar tais contornos trata-se não apenas da reinvenção das porções de terra e seus contornos geopolíticos – uma face perversa do desenho apresenta-se em cada mapa – e dos seres que lá exorbitam vida, mas também da percepção de como as águas, os oceanos, os rios e os mares foram e são territórios de circulação e disputa. 

Esta triste e preocupante avaliação poderia passar pela multiplicação das mortes por afogamento de refugiados no mar do Mediterrâneo, que dobraram no ano de 2021, em plena crise sanitária internacional; pela corrida pela colonização do espaço e a esperança de descobrir fontes de água potável que possibilitem condições de vida aos bilionários que dobraram seus lucros nesta pandemia; pela crise hídrica que machuca o Brasil, motivada pela naturalização da exploração percebida na ganância das usinas termelétricas que assolaram, com exterminadores ondas de lama, as vidas de cidadãos e trabalhadores das cidades de Mariana ou Brumadinho nos últimos anos do Brasil; pelo degelo das calotas polares, que avizinham um cenário distópico por ora já experimentado em filmes de ficção científica na Hollywood branca, patriarcal e gananciosa; pela falta de saneamento básico nas áreas pobres dos grandes centros urbanos e nas cidades de menor escala que espraiam-se pela interior de um Brasil desatendido pela máquina pública; pela presença de geosmina, nome difícil, que interrompe o serviço de águas no Rio de Janeiro e, quando esta ainda jorra de nossas torneiras, chega turva e mal-cheirosa; pela falta se segurança e soberania alimentar que atesta a perversidade de um projeto de morte levado à cabo pelo Estado brasileiro não apenas pelo incentivo ao comércio de armas, pela manutenção das violências, mas também pela perversidade atroz da fome e da sede que retornam a ser um problema de ordem primeira na vida do povo brasileiro. Muito embora este tema seja ostensivamente relevante para uma compreensão das questões que encharcam a contemporaneidade, darei-me a liberdade aqui de ousar neste ensaio um outro caminho.

Atentemo-nos por ora ao reflexo das águas, Fator extremamente relevante para a compreensão dos trabalhos aqui apresentados: uma primeira sala que investe na materialidade, ora úmida, ora seca – inconstante porque movente – do barro da artista Carla Santana, uma segunda sala instalativa com a fluidez, agora lavada, das cores que abundam em pinturas da artista Ana Cláudia Almeida e uma terceira sala, composta de pinturas feitas por ambas, em dupla. Esta terceira sala é composta de telas aqui tensionadas em chassis de madeira mas que outrora faziam parte de uma grande composição única. Na sua apresentação anterior, acontecida no espaço Auroras, em São Paulo, tal pintura encontrou-se como peça única no fundo de uma piscina cheia d’água. 

Por ora gostaria de tomar esta memória como dispositivo para a construção deste ensaio: é da memória da relação com estas artistas, de como me sinto nutrido por suas propostas poéticas e pela potência de seus trabalhos que esmiúço algumas características que gostaria de desenvolver neste texto. Uma abordagem sobre como as propostas aqui expostas atuam como reflexos de um corpo mais vasto de trabalhos, de complexidades mais largas, de poéticas em envolvimento.

Victor Gorgulho

1. Da água, mas também da terra, do fogo e do ar – do gesto em Carla

Quando falamos de corpo, do que falamos? Quando falamos da criação, para que campo nos orientamos? Artista visual, performer e atriz, o corpo apresenta-se de forma multifacetada e complementar na poética da artista. Se tomarmos como ponto de partida a sua série “Processos Sociocirúrgicos” [2018], poderíamos inscrevê-la numa genealogia de trabalhos que investe na representação satírica por meio do corpo. Seria possível ler este trabalho em conjunto a outros de artistas como Panmela Castro [Revanche, 2019], Renata Felinto [White face, Blond Hair, 2017] ou até mesmo de artistas que compõem outras geografias e tempos históricos, como Howardena Pindell [Free, White and 21, 1980]. No entanto, o corpo apresentado em Coadunar parece negar-se a tais aproximações – muito embora estas continuem sendo uma chave de leitura pertinente. Trata-se do corpo da artista, aquele que promove o gesto, mas sobretudo de um corpo da escultura. As figuras apresentadas no conjunto escultórico de Coadunar – produzidas em momentos diferentes dos anos de 2019, 2020, 2021 e 2022 – são resultado de gestos distintos de Carla. Este corpo, apesar de potente, não parece entender-se como separado de um mundo e das forças que o movem. Arrisco que este trabalho seja realizado numa espécie de convocatória: da terra que compõe o barro; do fogo que queima algumas das peças – outras, propositadamente, mostram um barro em outro estado,, outra força, também outra fragilidade; da água que ganha contornos visíveis nos recipientes de vidro que a artista instala no espaço; e na leveza do ar que inscreve, junto ao tempo e a partir do corpo, fissuras, caminhos e craquelados pela superfície de barro que toma o espaço expositivo.

A relação de Carla Santana com a cerâmica, a argila e o barro, no entanto, não pode ser resumida neste trabalho: é possível desfiar seus trabalhos e perceber que em ‘Processos Sociocirúrgicos’ e ‘Coadunar’ tais separações entre o corpo da artista e aquele da escultura ficam mais evidentes, mas outra porção de seu universo poético, em suas séries ‘Fardo’ e ‘Recôndita’ , este corpo mostra-se numa espécie de simbiose desejada com a matéria. Tais indícios fazem com que precisemos nos atentar, chegar mais perto desta produção, que parece negar-se às fáceis compreensões ao tomar a liberdade da experimentação como um dos vetores de ação.

Para Coadunar, e alguns de seus trabalhos pares, poderíamos mirar outros corpos de obras: aqueles que investes num corpo gestual, em pleno movimento; um corpo que inscreve-se na matéria em vez de, como a linguagem, querer escrever com ela. As figuras aqui apresentadas sugerem um antropozoomorfismo que também pode ser percebido nas figuras míticas de Maria Martins, no amassar e moldar de Celeida Tostes e Anna Maria Maiolino, nas paletas terrosas de Solange Pessoa e Maria Lira Marques, apenas para citar alguns exemplos. Tais aproximações não se apresentam aqui como uma tentativa de genealogia. Muito antes pelo contrário. São ecos – reverberações de artistas que parecem, como Carla, ter percebido que aquele mesmo corpo que é produzido por um mundo é o mesmo que, ao decidir fazer forma com uma energia empregada pelas mãos, é responsável por sua urgente deformação.

Nos desenhos e pinturas que vemos instalados nas paredes, a artista, indiretamente, faz ecoar outras palavras, aquelas de Francis Bacon, ao ver as pinturas no fundo de uma caverna na Espanha: nenhum artista moderno seria capaz de superar a grandiosidade da habilidade daqueles que, sem o paradigma da representação e da história da arte, inscreveram suas percepções no mundo e com ele. Inscrever na superfície, rasurar, desenhar a partir dos sulcos. Tais imagens, aquelas que ultrapassam o paradigma da representação, são grandiosas porque inscrevem a humanidade numa franca relação com outras formas de vida: o voo dos pássaros, o encontro e a fuga com um bisão em movimento ou até mesmo a ilusão apaixonante, por vezes fantasiosa, do encontro da coisa com a sua própria imagem. Seja no fundo de uma caverna, imersa ou rente à boca larga de um vaso. A matéria do corpo da escultura acessa a tensão do corpo daquele que vê, e justamente por isso, pode sentir.

Victor Gorgulho

2. Da leveza do que tem força – da cor e do espaço em Ana

Na ‘aventura formal’ de Ana Cláudia Almeida – tomo as pertinentes palavras da crítica Clarissa Diniz como ponto de partida: “em que pese que possamos falar das cores, das manchas ou da fatura de sua pintura, para dela nos aproximarmos devemos acionar também um repertório que passa pelo corpo, pelo tato, pela matéria. Do mesmo modo, ainda que sua pintura se faça no e como espaço, podemos igualmente evocar o tempo e sua performatividade para compreendê-la, uma vez que tudo que nela se dá a ver deriva de um intenso – e quase sempre longo – processo de transformação.” 

Ana Cláudia vem operando uma pesquisa formal de estatura que no passado, de maneira mais evidente, já teve as águas e sua presença nas cidades como um tema. De maneira fluida e sutil, a artista vem se apropriando de maneira mais contundente da pretensa liberdade da abstração. Suas formas parecem cada vez menos justificadas e a relação, a fricção, a topologia, o relevo e o embate com a superfície soam cada vez mais um motivo contundente para a artista prosseguir seu caminho de pesquisa poética. Outrora a crítica Diane Lima versou de maneira precisa e contundente o que me parece fundamental ponto para perseguirmos a liberdade com que a artista insiste em colocar-se no mundo: “Ana Almeida é um dos expoentes de uma geração a elaborar o que chamamos de novas práticas de autodeterminação: corpos em perspectiva que anunciam um mundo onde não mais estão na posição de interdependência com o outro mas exercem suas singularidades anti-temáticas ainda que críticos sobre suas presenças no mundo”. Isto posto, parece-me que nessas práticas de autodeterminação a transferência do corpo para a matéria que notamos nos papéis resinados, emassados, moldados e pintados em “Odor Vivo” repercutem alguns procedimentos que podem ser compreendidos justamente no processo de transformação elaborado por Diniz. Seja aqueles próprios à poética da artista, seja a uma possível leitura de seus gestos à luz da produção artística de outros expoentes que parecem, em seus trabalhos, ter incômodos próximos a esses da artista: uma vontade de instaurar espaços a partir do corpo. 

“Trabalhar a matéria é moldar o real sem a palavra”, afirmou Ana Cláudia em entrevista. Em outra fala sua, narrou um desejo de que, com seus trabalhos, as pessoas se sintam “soltas e confortáveis”. Se este é seu desejo, é bem verdade que a artista toma um caminho nada óbvio para que isto aconteça. Nesta instalação aqui apresentada, nota-se uma correlação ao que o crítico Paulo Venâncio Filho antes escreveu sobre a produção escultórica da artista Iole de Freitas, que nos anos 1980, parece ter manifestamente decidido fazer: sem abandonar, liberar-se do plano da superfície para ir ao encontro de “uma técnica corporal específica, improvisada, jazzística, afim, como não pode deixar de ser, à movimentação física, se não até mental da dança – a percepção do corpo como liberador de energia. (…) Sem abandonar o plano, buscava atingir a realidade do peso, da massa, do volume; fazer o plano absorver a verdade plástica do corpo, a sua presença contemporânea não-representacional.” 

Muito embora saibamos que esta produção não propõe qualquer relação direta com estas séries de Freitas, Ana Cláudia Almeida, tal qual Iole, exprime movimentos multidirecionais. Torna-se impossível para aquele que insere seu corpo no espaço da instalação – quiçá um outro corpo – encontrar uma origem única para esses movimentos que constituem o espaço, “Como multidões, sem começo, meio ou fim, esta ou aquela direção. Tensas e ao mesmo tempo em repouso (…) parecem sugerir coreografias entre a individualidade e a coletividade, trazem à luz um sono conturbado, ânsia corporal”. Se no caso de Iole de Freitas tal movimento é operado na rigidez do metal, dos arames e das tortuosidades metálicas, no caso de Ana Claudia Almeida esta ânsia do corpo revela-se já existir no trabalho da artista. Percebe-se tais movimentos nas hachuras do pastel oleoso sobre a superfície rugosa do papel – engana-se aquele que confia plenamente na ideia do plano. Para o artista, o papel é um corpo repleto de relevos onde a cor está prestes a alojar-se – ou não. “E demonstram como é possível apoiar-se e construir no movimento interminável que, à primeira vista, é de acúmulo e desordem, de forças contrárias que se repelem, afastam e desequilibram.” 

Mas não ousarei calar-me sobre a cor. Ana Cláudia Almeida, ao tomar as águas como temáticas, já exprimiu que esta não era pensada, mostrada e tornada imagem sem a presença humana. Na paleta, cores da natureza revelavam-se justapostas a outras, que a artista afirma como “tóxicas”. Nesta instalação, percebemos uma toxicidade esmaecida, lavada, aguada. Tons pastel ou candy colors, para nós, que aqui percebemos com o corpo inteiro – e não apenas o olho – este espaço, pontos de atenção em meio ao branco que revela, sem excessos, as bordas escurecidas do papel. A artista acumula a esta experiência uma sugestão de olfato – odor vivo. Dos cinco sentidos, aquele que foi menosprezado pela história da arte. Quais sensações e sentidos foram até então ignorados por nós? 

Victor Gorgulho

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